Aula inaugural do Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Uma das contribuições de Marx não só para o conhecimento da realidade social, mas também e, sobretudo, para a análise de situações políticas encontra-se na “Luta de classes na França” e depois no “Dezoito brumário de Luís Bonaparte”: é quando introduz a idéia de fração de classe a fim de explicar o jogo político em 1848 e 1852. Por outro lado, a idéia de que é possível encontrar outras formações que as frações de classe aparece nítida no “Dezoito brumário, quando se refere à “coterie do National” (jornal de importância na época). A esse propósito, diz ele: “Não era uma fração da burguesia ligada por grandes interesses comuns e separada das demais pelas condições de produção a ela peculiares; era uma coterie de membros da burguesia que eram republicanos, escritores, advogados, oficiais e funcionários públicos. Sua influência residia nas antipatias do país contra a pessoa de Luís Felipe, nas memórias da velha república, na fé republicana de um número de entusiastas e, acima de tudo, no nacionalismo francês, que mantinha sempre vivo o ódio aos tratados de Viena e à aliança com a Inglaterra”.
Uma observação: a palavra coterie encontra-se praticamente sem alteração no alemão e no inglês. O Aurélio lhe dá como significado “panelinha, igrejinha, corrilho”. Estas palavras, na acepção que lhes empresta o mesmo dicionário, reduzem o universo vital em que se dá a reunião das pessoas que integram uma coterie. Mais que “conciliábulo” ou “reunião facciosa” ou “concílio de heréticos ou cismáticos”, ou então “panelinha e igrejinha”, coterie traduz um agrupamento de pessoas que têm em comum algo que lhes permite reunir-se independentemente de status: a mesma escola de pensamento ou freqüentada, os mesmo gostos refinados e próprios dos que os têm, os mesmos juízos estéticos e éticos da sociedade.
Note-se que na coterie do National não estamos mais diante de um agrupamento que se distingue por seu vínculo com as classes sociais ou o processo econômico. O que reúne funcionários, oficiais do Exército, literatos em coterie (idéia da maior importância na análise social e política) são iguais ou semelhantes idéias e experiências vividas.
Este é um ponto que gostaria de deixar assinalado antes de prosseguir.
Fixemo-nos, ainda, no “Dezoito brumário”, agora na célebre passagem sobre os camponeses. Ela é fundamental para a compreensão do fato classe social, mesmo que tenha sido relegada a segundo plano por muitos analistas de situações políticas. Que diz Marx nessa longa passagem, que me permito transcrever na íntegra? Que há outros elementos afora o “modo produtivo (formas de propriedade e direção etc)”, como diria Gramsci, para caracterizar uma classe. Vamos ao texto: “Os pequenos camponeses parcelários formam uma imensa massa, cujos membros vivem na mesma situação, mas não entram em relações várias uns com os outros. Seu modo de operação isola-os ao invés de conduzi-los a relações mútuas; esse isolamento é agravado pelo mau estado dos meios de comunicação na França e pela pobreza dos camponeses. Seu lugar de operação, a parcela, não permite em seu cultivo qualquer divisão do trabalho, qualquer aplicação da ciência e, por conseguinte, qualquer diversidade de desenvolvimento, variedade de talento ou riqueza de relações sociais. Cada família camponesa individual é quase auto-suficiente; produz diretamente a maior parte do que consome e assim obtém seus meios de vida mais pela troca com a natureza do que pelas relações com a sociedade. A parcela, o camponês e a família; uma próxima porta, outra parcela, outro camponês e outra família. Um grupo deles forma uma aldeia e um grupo de aldeias forma um departamento. Assim, a grande massa da nação francesa é formada pela simples adição de magnitudes isomórficas, quase da mesma maneira que batatas em um saco formam um saco de batatas. Na medida em que milhões de famílias vivem sob condições econômicas de existência que separam seu modo de vida, seus interesses e sua formação cultural dos de outras classes e os leva a conflitos com essas classes, elas formam uma classe. Na medida em que só existe uma ligação local entre esses pequenos camponeses parcelários e em que a identidade de seus interesses não cria nem coisas em comum (Gemeinsamkeit — a feeling of community na tradução inglesa) nem ligação nacional, nem organização política entre eles, não formam uma classe. São assim incapazes de defender seus interesses de classe em seu próprio nome, seja por meio de um parlamento ou de uma convenção”.
Detenhamo-nos um momento neste texto. Ele nos diz que:
1. a formação de um Nós (Gurvitch) abrangente — estado em que as consciências individuais e a coletiva entram em duradouro processo de interação e fixação de coisas (arriscaria dizer objetivos, projetos) comuns — decorre dos meios de comunicação e também de uma relação inversa com a pobreza relativa dos indivíduos. Quero dizer com isto que a uma maior pobreza corresponde uma menor coalescência dos segmentos, menor integração dos indivíduos numa visão grupal do mundo, da sociedade e dos homens. Para que se entenda o que pretendo dizer com coalescência, nada melhor do que recorrer às definições correntes. Nos dicionários encontramos a palavra com dois sentidos, ambos servindo, analogicamente, para que se compreenda o que se entende por coalescência dos grupos sociais. O primeiro sentido é o de “junção de partes que se encontravam separadas”. Nesse sentido, deve entender-se por coalescência a aproximação mais ou menos íntima dos grupos, isto é, a aproximação dos valores de uns dos valores de outros. Mais complexo é o outro sentido: “Fenômeno de crescimento de uma gotícula de líquido pela incorporação à sua massa de outras gotículas com que entra em contato”. É nesse sentido complexo que se deve tomar a palavra, desde que por “gotícula” se entendam os valores e, mais do que eles, as normas e padrões de conduta em que se consubstanciam. Não que normas e padrões se “acrescentem” uns aos outros, mecanicamente; o contato, a aproximação dos grupos leva a que haja uma “mudança”, uma “fusão” de um valor noutro, no lugar de um “acréscimo”. Como se diria na Química, uma “combinação”, não uma “mistura”. Com isso, têm-se novas normas e padrões que incorporam, superando, os anteriormente vigentes em cada grupo. É da coalescência dos grupos sociais que resultam novas normas e novos padrões de conduta.
2. A riqueza das relações sociais — que leva à variedade dos talentos individuais — depende do desenvolvimento da divisão social do trabalho;
3. para caracterizar uma classe, devemos ter em conta o gênero de vida (expressão de sentido amplo), os interesses (seguramente materiais) e a cultura (possivelmente a transmitida pela escola);
4. a conexão nacional dos grupos sociais é condição necessária para a transformação da classe de factum sociológico em factum político. Para que se dê essa transformação, é necessário que existam as condições eficientes: organização política e identidade de interesses como tal reconhecida pelos indivíduos membros do grupo.
Demos um salto, não muito grande, e nos detenhamos um instante na “Guerra civil na França”, em que Marx analisa a situação que se criou após a derrota da França na guerra contra a Prússia e a Comuna de Paris em 1871. Depois de descrever a situação social e econômica dos camponeses e deixar claro que os proletários de Paris dariam passos seguros para resolvê-la, escreve: “Os rurais (esta era, com efeito, sua apreensão maior) sabiam que três meses de livre comunicação entre a Paris da Comuna e as províncias trariam um levantamento geral dos camponeses; daí sua pressa ansiosa em estabelecer o bloqueio policial em torno de Paris como se fosse para conter a propagação da peste aftosa”.
Que ressalta deste trecho? Que a derrota da Comuna se deu, entre outras causas, pelo fato de Paris estar isolada, isto é, de não haver comunicação constante entre os communards da Paris sublevada e os camponeses que formavam a maioria da população.
Que conclusões provisórias podemos tirar desses textos de Marx?
1. Que a classe deve ser vista como resultante da identidade comum de interesses expressa num “sentimento de comunidade”, que resulta da construção de coisas em comum;
2. que o “mau estado dos meios de comunicação” e a “pobreza” impedem que se constitua o Nós em que se expressará esse sentimento de comunidade;
3. que a classe deixa de ser factum sociológico e passa a ser factum político quando interesses e coisas em comum se representam num parlamento ou numa convenção. Ainda não podemos falar em partido, respeitando o que se lê no “Manifesto Comunista”: “a constituição do proletariado em classe e depois em partido político”.
Fiquemos por um momento no item 2, o referente aos meios de comunicação.
Não será possível compreender os fatos políticos se não levarmos em conta:
a) que os fatos históricos devem ser interpretados e compreendidos à luz do Espaço e do Tempo em que se dão. O Espaço é a conditio realiter dos grupos sociais;
b) que ao mesmo tempo se deve atentar, seguindo as lições de Durkheim, para a Densidade e o Volume dos grupos sociais em presença;
c) que tendo em vista as conseqüências das ações dos sujeitos históricos, as ações de fato significativas — e aqui introduzo um novo princípio de análise — devem ser vistas à luz dos princípios da Ordem e da Revolução;
d) que se faz necessária a existência de uma organização (idéias e aparelho), que atue no âmbito do Espaço definido pelo Estado, para que essas ações construam o novo em termos de instituições que persistam e afetem o cotidiano das pessoas.
A conjunção de Espaço e Tempo, Densidade e Volume, Organização, Ordem e Revolução permite ver de nova perspectiva, diferente daquela fundada na posse dos meios de produção ou então nas classes sociais; permite analisar uma classe social qua fato sociológico ou então qua fato político. Se registramos, a partir da análise da situação dos camponeses sob Luís Napoleão, que a classe pode ser vista como fato sociológico e igualmente político, é porque estamos estabelecendo uma distinção entre o “sociológico” e o “político”. Ao fazê-lo, não pretendo de maneira alguma tratar o Político como algo abstrato sem nenhuma ligação com o Social. Quando falo Político, falo de algumas características que são específicas do fato estudado. A distinção entre o Social e o Político foi feita, aliás, por Durkheim nas “Regras do método sociológico”, quando disse que a forma política da Sociedade é dada pelo modo pelo qual os segmentos se acostumaram a viver juntos. Ou, se quisermos nos ater à definição que do fato político dava, nos anos 1950, o prof. Lourival Gomes Machado, titular da Cadeira de Política: “O fato político é um fato de ajustamento segmentar consciente”. Isto para não entrar no universo do “Amigo-Inimigo” de Carl Schmitt.
Observe-se que a definição de Lourival Machado é uma decorrência daquela de Durkheim: a “maneira pela qual os segmentos se acostumaram a viver juntos” traduz-se, necessariamente, na tomada de consciência daquilo que foi feito em comum e daquilo que deve ser preservado da intenção hostil de outro. O que implica, a meu ver, que o fato Político expressa, sempre, um conflito.
Voltemos um minuto a Marx. A idéia de “fração de classe” contradiz, na análise dos fatos concretos, a de “coterie”. A razão da afirmação é simples: a coterie tal qual descrita por Marx supõe, sempre, uma determinada visão do mundo e, em, potência, uma organização — fluida que seja — expressa no encontro dos que se sentem iguais e se reúnem para trocar idéias e lamentar o passado que se foi. Note-se, porém: é uma reunião que se dá com relativa freqüência e que pode ser vista à luz dos princípios que mencionei sob pena de estarmos diante de um fenômeno social de sociabilidade passiva, como diria Gurvitch, portanto sem interesse sociológico ou político. Ainda que podendo caracterizar-se num determinado Espaço e Tempo, a “fração de classe” não tem necessariamente Organização. E caberia perguntar se a simples indicação de que estamos diante desta ou daquela fração de classe permite dizer que seus membros têm idêntica ou semelhante visão das coisas, dos homens e do mundo. É preciso não esquecer que seja do ponto de vista sociológico, seja do político estamos falando de homens e mulheres, de seres de carne e osso que sabem que vão morrer, como diria Unamuno, e não apenas de construções intelectuais. Ademais, a pertença a uma ou outra fração não implica, como aquela à coterie, a reunião; a fração se distingue sem dúvida pelo interesse. Contudo, ainda que este interesse que é visto como material possa difundir-se no segmento, no grupo, ele será sempre visto pelos indivíduos como um interesse pessoal, “meu interesse”, que homens e mulheres sabem ser igual ou semelhante ao de outros, mas não sentido por todos como comum.
É preciso dizer que o analista não pode tomar esse interesse como coletivo a menos que se expresse em símbolos comuns aos membros da fração, que, assim, deixa de ser uma fração de classe e passa a ser uma organização in fieri. Quando o Comité des Forges, o sindicato da siderurgia francesa, se constitui, estamos diante não de uma fração de classe, sociologicamente falando, mas de uma organização, politicamente pensando. A qual, perdoem-me a tautologia, só pode existir em sociedade. Que razão teria Gramsci para falar de Croce como de um “comitê de propaganda” a não ser esta, a de considerar o filósofo como divulgador de uma concepção do mundo que encontrou quem a seguisse e a sustentou o quanto pôde? Gramsci não está preocupado com a situação de classe daqueles que viam na filosofia de Croce o nec plus ultra do pensamento europeu. Preocupava-o, isto sim, o fato de que, pela posição que ocupava no mundo ilustrado italiano, Croce era uma organização no sentido de que dele irradiava para os intelectuais uma visão do mundo. Não era um partido político no sentido tradicional, mas exercia a função de “comitê diretivo” a dar aos intelectuais uma filosofia e uma pedagogia aos mestres da escola primária à universidade. Neste sentido, Croce era um indivíduo que fazia, agora sim podemos dizer, a função de partido. Era uma organização: um comitê diretivo — esta a expressão que Gramsci usa quando cuida de como se conquista a hegemonia —, ainda que individual, que transmitia uma filosofia e tinha quadros que a ela aderiam, reproduzindo-a num meio social amplo.
Quando consideramos a fração de classe e não os símbolos em torno dos quais convivem seus membros, não falamos de uma organização: trata-se de um recurso analítico de que lança mão o observador para classificar um grupo social cujos integrantes têm interesses que o observador diz serem semelhantes entre si, alguns deles idênticos aos de outros grupos. Não são capazes, esses integrantes, de apresentar “coisas feitas em comum”, nem de pensar em representar-se num parlamento ou convenção. Quando o fazem, e quando o grupo tem consciência daquilo que construiu e da necessidade de representar-se num parlamento (direta ou indiretamente como no caso do Comité de Forges sem cuja atuação não se compreenderá a III República francesa), não estamos diante de uma fração de classe, mas de um partido, que buscará representar os interesses que seus dirigentes consideram como sendo os interesses da fração.
Creio poder dizer que Marx teve consciência das limitações analíticas do conceito de fração de classe e por isso introduziu o de coterie e, mais significativo ainda, o de Partido da Ordem contraposto ao Partido da Anarquia ou da Revolução. O Partido da Ordem e o Partido da Revolução mais refletem princípios do que são necessariamente representados por uma única agremiação partidária que exclua as demais com as mesmas características. O porquê dessa observação, veremos mais adiante ao discutir a dialética da Ordem.
No que Partido da Ordem é analiticamente mais preciso que fração de classe? A meu ver, pelas seguintes razões:
1. Porque o terreno social que cobre é mais amplo. Marx definiu o Partido da Ordem como aquele que tinha como lema “Propriedade, Religião, Família, Ordem”. O Partido da Revolução não tem lema, mas é facilmente caracterizável porque nega as estruturas estatais de dominação expressas na Propriedade e reproduzidas naquelas outras da Família e da Religião e, por derivação, na Ordem. Ao Partido da Revolução voltarei mais adiante;
2. O lema do Partido da Ordem — fixemo-nos nele por ora — recobre um universo social amplo na medida em que traduz aspirações de diferentes camadas sociais. O observador, partindo do princípio de que o conflito social se dá entre o Partido da Ordem e o da Revolução, poderá verificar que no mundo simbólico de cada um deles convivem indivíduos que pertencem a diferentes situações de classe. Propositadamente disse “convivem” e não “se reúnem” porque aquilo que importa na análise política de situações históricas é a adesão espiritual, vital e por isso mesmo plena de paixão nos momentos de crise política que afeta os fundamentos do Estado, as formas sociais em que se expressam os valores em torno dos quais, até aquele momento, os indivíduos decidiram viver e morrer. Convém não esquecer que, na extremidade lógica (Clausewitz) do conflito social, não se mata e morre pela Propriedade, mas sim pela conservação das formas sociais que deram origem ao mundo simbólico que representa nossa aspiração de maior autonomia, independência e autoridade, ou poder, como quer Gramsci, nisto seguindo Hobbes. O matar e morrer nas guerras de religião dos séculos XVI e XVII é o melhor exemplo daquilo que pretendo dizer.
É o caso, agora, de refletir sobre o Partido da Revolução. Registre-se, em primeiro lugar, como assinalei atrás, que Marx não deu um lema a esse partido. Bem pensadas as coisas, no limite, o Partido da Ordem tende à aceitação da “disposição das coisas segundo relações aparentes e constantes, simples ou complexas”. É assim que o dicionário Petit Litré registra a Ordem que, mais que integra, emoldura o lema do Partido da Ordem. Já o Partido da Revolução não tem lema, mas é facilmente caracterizável pelas idéias que defende. Elas não se limitam a negar as estruturas estatais de dominação fundadas na Propriedade e aquelas outras espelhadas na Família e na Religião. No limite, a Revolução pressupõe uma transformação radical, de fond en comble, de tudo o que existe, pois se inspira num “sistema de opiniões compostas de hostilidade ao passado e procura de um novo porvir”. Nesse ponto, isto é, quando este porvir se realiza em formas sociais diferentes daquelas que o Partido da Revolução transformou radicalmente, o movimento dialético presente na sociedade se completa e o Partido da Revolução instaura sua nova Ordem.
A Revolução só pode pretender transformar as formas sociais defendidas pelo Partido da Ordem porque a Ordem a traz em si como negação da ordem estabelecida. Reflitamos um instante: se não houvesse conflitos na sociedade, fato espaço-temporal, histórico, não haveria mudança social. A sociedade vive, e as formas em que se expressa a dominação se transformam porque ela é o reino do Conflito que tende ao Consenso numa fase superior do desenvolvimento das forças produtivas e da maneira de os homens encararem o processo produtivo e sua inserção num universo simbólico. De que outra maneira podemos pensar sobre o que nos disse Gramsci no Caderno 1, § 156: “o presente deve ser uma crítica do passado, além de (e por que) uma sua ‘superação’. Mas o passado é, por isso, de jogar-se fora? É de jogar-se fora aquilo que o presente criticou ‘intrinsecamente’ e aquela parte de nós mesmos que a isso corresponde? Que coisa significa isso? Que devemos ter consciência exata dessa crítica real e dar-lhe uma expressão não apenas teórica, mas política. Isso é, devemos ser mais aderentes ao presente, que nós mesmos contribuímos para criar, tendo consciência do passado e de seu continuar (e reviver)”. A idéia da dialética real da sociedade está traduzida em outra passagem, agora no § 62 do Caderno 3: “Condena-se em bloco o passado quando não se consegue diferenciar-se, ou ao menos as diferenciações são de caráter secundário e se exaurem, pois, no entusiasmo declamatório”. Ou como, como de outra maneira interpretar-se a afirmação de Trotsky, segundo a qual a massa faz a revolução no amargo sentimento de não poder suportar mais o status quo, mas que apenas o Partido que dirige o processo sabe aonde ela levará?
Quero com isto dizer que a Revolução só existe porque nega uma Ordem que contem elementos que justificam sua negação, que o Partido da Revolução traduz em palavras de ordem que expressam uma ideologia, uma concepção do mundo — sabendo, porém, que, uma vez triunfante, estabelecerá a sua Ordem, isto é, conduzirá o processo social tendo em vista a “disposição das coisas segundo relações aparentes e constantes, simples ou complexas”.
Observe-se, no entanto — e creio que a observação é de capital importância na análise das situações concretas — que aquilo que chamo de dialética da Ordem dá-se na realidade e não no discurso intelectual do observador. Com isso quero dizer que a Revolução é uma das “negações” — digamos assim — da Ordem. Consciente de que está diante de uma dialética do real, o observador deverá estar atento para saber em que momento desse processo poderá classificar o fato social e político que está analisando. Ele sempre encontrará aqueles que, se imaginando fieis ao Partido da Ordem, na sua praxis já negaram emocionalmente a Família e a Religião, delas conservando apenas a aparência. Maquiavel já dizia, repetido depois por Rousseau: parere, no essere, isto é, o Ser e o Parecer passaram a ser diferentes. Da mesma maneira que os que na aparência dizem ser revolucionários, apenas desejam o fim da Ordem sem que tenham em mente a proposição de uma nova.
É essa dialética da Ordem que devemos ter presente ao analisar situações de mudança social lenta ou de média velocidade, ou então a grande mudança, isto é, a Revolução: Ordem para assegurar determinadas formas de dominação — Revolução para alterar essas formas — Ordem para estabelecer novas formas de dominação que não eliminam as anteriores, mas as superam. Os arautos do socialismo tiveram consciência dessa dialética, momento privilegiado do processo social e histórico. Que os que formam intelectual e emocionalmente com o Partido da Ordem prefiram a Ordem à Justiça — como teria dito Goethe — ou que os defensores do Partido da Revolução neguem o passado na vã tentativa de mudar a natureza humana e, mais que fazer a revolução, instaurem simplesmente uma desordem sem Norte para o qual dirigir as ações — tudo isto são desvios que a História registra sem que por isso se apague a relação que Ordem e Revolução guardam entre si. Quando temos em mente a proposição de Engels, no prefácio da segunda edição de “As lutas de classe na França”, na qual afirma que a metralhadora tornou a revolução das barricadas (1830, 1848, 1871) sem sentido, e que o crescimento do proletariado alemão garantiria em breve tempo o triunfo do SPD; ou quando temos presente o esforço de Rosa Luxemburgo, sustentando que o socialismo não negaria as conquistas políticas vindas da Revolução Francesa, ou o empenho de Lênin, no fragor da guerra civil, para conservar o Museu Hermitage em São Petersburgo, podemos dizer que a Ordem e a Revolução conciliam a “razão das gerações mais antigas” com a mudança própria da condição do homem enquanto ser político e social.
Essa condição, quando se considera a relação do homem com a Natureza e com seus semelhantes, consiste num impulso que o leva a transformar o ambiente, transformando-se por igual e ao mesmo tempo e assim construindo a História. Em outras palavras, a Ordem — tal qual a vejo — concebe a ação, que é atual e livre, como realizada em quadros sociais que não dependem exclusivamente da vontade do agente, pois, ao agir, ele se defronta com uma situação que não foi por ele determinada, mas sim estabelecida pelos que o precederam. Essa ação, por si, é transformadora e em seu curso supera, sem anulá-las ou destruí-las, as condições que o agente encontrou ao começar a agir, “realizando e desenvolvendo germes e potencialidades engendradas pelo passado e oferecidas pelo presente”.
Podemos concluir com Rousseau, pai de todos nós. É com ele, no “Discurso sobre a Desigualdade”, que se estabelece que o conhecimento da vida humana, a consciência histórica, refletirá o passado no presente em que será gestado o futuro. É importante assinalar que com Rousseau nasce também o espírito revolucionário, ativista e sempre referido às instituições. O espírito revolucionário que se encontra nas obras posteriores ao “Discurso sobre a desigualdade” é lastrado em uma proposição ético-normativa que se cristaliza em um projeto institucional que reflete a consciência histórica — aquilo a que se propõe é a reorganização das instituições políticas. Cabe ver que, rompendo com as instituições tradicionais (por isso o espírito é revolucionário), Rousseau sabe que a ação humana tem de ser organizada de forma a poder atingir os objetivos éticos fixados desde o início da ação política, respeitando aquilo que se poderia dizer ser a “razão das gerações mais antigas”. Esse espírito é fundamentalmente histórico porque compreende que a vontade de renovação, mesmo quando inspirada em um desejo de mudança radical, só tem sentido histórico e probabilidade de tornar-se realidade se não violentar as linhas gerais do processo histórico sobre o qual quer interferir e, respeitando-as, souber dirigir as ações humanas para os novos rumos propostos pelo ideal.
Sub censura — e, como diria Otelo, “soft you, gentlemen” em suas críticas.
Muito obrigado.
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