Não nos esqueçamos da advertência papal: “Tanto os intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente, em generalizações grosseiras…”
Se lemos a Exortação “Evangelii Gaudium” com “olhos de ver e compreender”, a missão a que Papa Francisco exorta não parece ser apenas a de levar a palavra de Cristo a pobres e ricos. É também, respeitada certa descentralização, fazer do mundo, se não um orbe católico, pelo menos uma sociedade global menos desigual. Para isso, é necessário dialogar com o Estado, a Sociedade (compreendidas aí Cultura e Ciência) e com as religiões não católicas.
Primeiro, o Estado, que a bem dizer é Governo. Ainda que, a certa altura, Francisco fustigue “ideologias que… negam o direito de controle dos Estados” sobre os mercados, afirmará também que “No diálogo com o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem soluções para todas as questões específicas…”. Afirma, porém, que a Igreja “não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça”. É preciso que todos saibam que “ninguém pode exigir-nos [da Igreja] que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil…”.
Compete ao Estado “com um grande esforço de diálogo político e criação de consensos… o cuidado e a promoção do bem comum da sociedade…”. À Igreja, “…transmitir convicções que possam depois traduzir-se em ações políticas”. O diálogo tem em vista que “… o sujeito histórico deste processo [não] é uma classe, uma fração, um grupo, uma elite. Não precisamos de um projeto de poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento coletivo”.
O diálogo entre a Fé e a Ciência, Francisco também estabelece em que termos deverá dar-se: “Quando o progresso das ciências… torna evidente uma determinada conclusão que a razão não pode negar, a fé não a contradiz… Em certas ocasiões, porém, alguns cientistas… exageram com afirmações ou conclusões que extravasam o campo da própria ciência. Neste caso, não é a razão que se propõe, mas uma determinada ideologia que fecha o caminho a um diálogo autêntico, pacífico e frutuoso”.
A cultura que preocupa Francisco é aquela em que vivemos, mergulhados no mercado: “Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é… superficial, provisório. O real cede o lugar à aparência… a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas, mas eticamente debilitadas”. Esse quadro está relacionado “com a desilusão e a crise das ideologias que se verificou como reação a tudo o que pareça totalitário…”. Cada indivíduo pretendendo “ser portador duma verdade subjetiva própria, torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se num projeto comum que vai além dos benefícios e desejos pessoais… Isto não prejudica só a Igreja, mas a vida social em geral…”.
A experiência do Cardeal Bergoglio fê-lo conhecer a dura realidade das cidades. Nelas, há “uma espécie de ambivalência permanente, porque… ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também… práticas de segregação e violência…”. Na Cidade, a “cultura mediática e alguns ambientes intelectuais transmitem, às vezes, uma acentuada desconfiança quanto à mensagem da Igreja, e um certo desencanto. Em consequência disso… muitos agentes pastorais desenvolvem uma espécie de complexo de inferioridade que os leva a relativizar ou esconder a sua identidade cristã… Lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos outros. Às vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, Se nos entregou como fonte de água viva”.
É essencial a união dos evangelizadores: “A credibilidade do anúncio cristão seria muito maior, se os cristãos superassem as suas divisões… Os missionários… [na Ásia e na África] referem repetidamente as críticas, queixas e sarcasmos que recebem por causa do escândalo dos cristãos divididos… Se nos concentrarmos nas convicções que nos unem e recordarmos o princípio da hierarquia das verdades, poderemos caminhar decididamente para formas comuns de anúncio, de serviço e de testemunho…”.
Não apenas na África e na Ásia essa união é possível e necessária: “…no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade”.
Francisco não se esquece dos que professam religiões não-cristãs: “… não podemos considerar o Judaísmo como uma religião alheia… Deus continua a operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer tesouros de sabedoria que brotam do seu encontro com a Palavra divina. Por isso, a Igreja também se enriquece quando recolhe os valores do Judaísmo…”
E acrescenta: ”Neste tempo, adquire grande importância a relação com os crentes do Islã, hoje particularmente presentes em muitos países de tradição cristã… Não se deve jamais esquecer que… Jesus Cristo e Maria são objeto de profunda veneração…” pelos muçulmanos…
E traz uma palavra acauteladora: “Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de quantos pretendem conciliar prescindindo de valores… dos quais não são donos… Não nos serve uma abertura diplomática que diga sim a tudo para evitar problemas, porque seria um modo de enganar o outro e negar-lhe o bem que se recebeu como um dom para partilhar com generosidade”.
Intelectuais e jornalistas caem, freqüentemente, em generalizações grosseiras. Mas intelectuais e jornalistas, muitas vezes, alertam: sub censura.
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(publicado nesta data em “O Estado de S.Paulo”)
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