A perfeita compreensão do que pretendo ao dizer que o Brasil transforma-se num Estado-sipaio da Globalização exige uma introdução ainda que longa ao tema. Os leitores, compreendendo, desculparão.
No Planalto, na Chancelaria e no Ministério da Defesa, firmou-se a convicção de que não é politicamente correto falar em Política de Poder e em Geopolítica, muito menos pretender que a Política Externa seja feita para defender o Interesse Nacional, o do Estado brasileiro e não o deste ou daquele Governo.
Tratemos, pois, de encontrar uma explicação para a presença brasileira no Haiti e agora no Líbano – coroamento das diferentes missões de paz da ONU de que o País participou e participa. Mesmo que seja em desacordo com os formuladores (?) da política externa brasileira, é tendo como referência o Poder e a Geopolítica que devemos examinar a participação do Brasil nessas missões internacionais em que não está em jogo o Interesse Nacional. Porque os Estados Unidos pensam nestes termos, a Rússia idem, França e Inglaterra igualmente e, para desespero de muitos, também o Coronel Chávez.
O fim da Segunda Guerra não alterou as linhas mestras da grande estratégia norte-americana. Em relatório de janeiro de 1945 − a guerra na Europa terminaria em maio daquele ano −, o Departamento da Guerra dos EUA instava a que houvesse colaboração militar com as Forças Armadas das Américas a fim de assegurar a defesa do Canal do Panamá e de todo o Hemisfério. Algumas zonas eram consideradas importantes, quer por motivos estratégicos, quer por terem matérias primas essenciais — o México, o canal do Panamá e áreas de aproximação, regiões do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil, o estuário do rio da Prata e áreas de aproximação, o estreito de Magalhães, Antofagasta (Chile), Mollendo (Peru). O Secretário da Guerra Patterson explicou ao General George Marshall, Secretário de Estado, no início de 1947 (antes do enunciado da Doutrina Truman), “que a ameaça de ataque a qualquer [dessas áreas] forçaria os Estados Unidos a irem em sua defesa, mesmo que não fosse certo que se seguiria um ataque aos Estados Unidos”. Acrescentava que os recursos naturais dessas áreas eram essenciais para o país “porque é imperativo que nosso potencial de guerra seja assegurado (…) durante uma emergência nacional”. Até hoje, os planejadores civis e militares norte-americanos insistem na importância da América do Sul e das Antilhas para a segurança do território (e das instituições) dos Estados Unidos
O jogo da Realpolitik não impediu que os Direitos Humanos e os princípios da autodeterminação e da não-intervenção fossem fazendo sua história e conquistando espaços no ordenamento jurídico internacional. Com uma ressalva ditada pela prática: a geopolítica e as relações de poder contribuíram para que se consolidasse a figura da “soberania restrita”, inventada por Brezhnev ao invadir a Tchecoslováquia em 1968, e que sempre foi posta em prática pelos Estados Unidos na sua área de influência no Hemisfério Ocidental. Nas áreas de influência das superpotências, os princípios eram meros princípios; nas outras, em que havia risco de confronto entre Estados Unidos e União Soviética, as Nações Unidas transformaram-se no fórum ideal onde se passou a decidir quem deveria ou não sofrer a intervenção para garantir os direitos humanos e a segurança internacional.
A experiência serviu para limitar as pretensões da ONU a ser o Leviatã definitivo, capaz de impor ordem à sociedade internacional. Em seqüência ao armistício na guerra da Coréia, uma força multinacional (ainda não chamada “de paz”), integrada por tropas de países neutros, garantiu o respeito à linha de demarcação entre o Norte e o Sul, e na crise de Suez, em 1956, não havendo um tratado de paz entre os beligerantes (Israel, Egito, França e Grã-Bretanha), a ONU enviou também uma força para separar as tropas dos dois primeiros, da qual não faziam parte et pour cause nem soldados norte-americanos nem russos. Mas o Brasil participou.
Seguramente, data do fim da guerra da Coréia, mais especialmente da crise de Suez, o reconhecimento deque, não sendo possível, no quadro da Guerra Fria, valer-se dos Exércitos das potências representadas em caráter permanente no Conselho de Segurança, era necessário encontrar Estados que se dispusessem a enviar tropas para separar eventuais inimigos em conflito aberto – desde, é claro, que o conflito pudesse envolver as grandes potências, com o que a segurança internacional (a paz) estaria em perigo.
Esses primeiros ensaios permitiram que se criasse uma entrada nova nos fichários da ONU e das grandes potências: a reservada a guardar o nome dos Estadosque, por esta ou aquela razão, dispunham-se a ceder tropas para compor essas missões de paz, ainda que não apenas fosse para manter a paz, mas para impô-la — os Estados-sipaios.
O Estado-sipaio não se define como Estado dependente no sentido em que alguns autores se serviram do substantivo ligado à palavra que o adjetivava para construir uma teoria das Relações Internacionais: a “teoria da dependência”. Creio, no entanto, que a compreensão do que seja o Estado-sipaio poderá, sem dúvida, partir do entendimento do que seja “dependência” – “dependência”, simplesmente, sem relação qualquer com a teoria que lhe traz o nome. Se nos ativermos aos dicionários, encontraremos que “dependência” é o “estado de uma pessoa que não pode realizar todos os atos da vida cotidiana” (Petit Larousse Illustré), definição que tomaríamos como “não poder realizar independentemente todos os atos…”. Outra definição nos aproximaria a “dependência” do sentido do “sipaio”: “Dependência – Necessidade de alguns se relacionarem, dependerem e encontrarem recompensa da parte de outrem” (Gould & Kolb, A Dictionary of the Social Sciences). Retenhamos a “necessidade de encontrar recompensa por parte de outrem”. Essa “necessidade” pode aproximar-nos da definição de “subalterno”: “dependente de outrem; pessoa que ocupa um lugar inferior ou subordinado” (Caldas Aulete, 1968). Ou, então: “2. que tem valor secundário” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa). Ou ainda: “Que ou aquele que se sente inferior a outro, que se coloca na condição de dever obediência a outro”. Houaiss (2001) acrescentará “subalternus, a, um – colocado abaixo de outros”.
Qualquer que seja a definição de “dependência” e “dependente” de que nos valhamos, convém ter em conta que nem os sipaios (Índia) nem os spahis (África do Norte francesa) serviam a ingleses ou franceses por se julgarem inferiores ou dependentes; quero dizer que não serviam por se julgarem subalternos. Serviam por interesse e/ou para alcançar status diferenciado que lhes valeria uma “recompensa” não necessariamente material, traduzida que fosse em reconhecimento ou mesmo em expectativa de gratidão, mas sempre uma recompensa por parte de outrem, no caso, o europeu. Não pretendo com isso que não se julgassem “subordinados” quando estivessem uniformizados: o Exército (ou outra força) em si implica a idéia de subordinação, pois há os que mandam e os que obedecem. Não é essa idéia inerente à carreira das Armas a que está por detrás da idéia de “sipaio” — aquilo que devemos procurar discernir é se, para o “sipaio” ou o “spahi”, na Índia ou na África do Norte francesa, a subordinação disciplinar nas Armas vinha ou não acompanhada da consciência de que era “colonizado”.
A consciência dessa relação – oposição que pode chegar à rebelião como sucedeu em várias fases da ocupação dos territórios coloniais. A consciência da dominação era própria do colonizador e, nas Armas, do Oficial inglês ou francês que comandava sipaios ou spahis. Todavia, ela apenas aflorava o consciente do nativo subordinado. Como diz Ferguson no seu estudo sobre o império britânico, ”Ao contrário de seus companheiros de armas brancos, os sipais [assim a palavra sipaio está grafada] não eram recrutados entre a escória da sociedade, aceitando o xelim da rainha como último recurso. Fossem eles hindus, muçulmanos ou sikhs, os sipais consideravam que sua vocação de guerreiros era inseparável de sua fé religiosa”. Não fora assim, isto é, se sipaios não se sentissem bem, psicológica e moralmente (sobretudo isso), servindo sob as ordens do “branco” e a Inglaterra não teria vencido o Grande Motim, na Índia em 1857. A observação de Ferguson é, portanto, esclarecedora: “Quando Delhi caiu diante das forças ‘britânicas’, essas forças eram majoritariamente indianas”. política, se houvesse, deveria traduzir-se na oposição europeu x colonizado, o nativo sentindo-se oprimido, impedido de ser livre
O apelo à idéia de disciplina para explicar a subordinação é de pouca valia para a compreensão do que fossem sipaios e spahis: afinal, eles tinham as armas. Se à posse delas se acrescentasse a consciência da dominação, chegaríamos sem dificuldade à situação que Montesquieu descreveu: “Na república, homens unicamente cidadãos não conseguirão conter pessoas que, com armas na mão, vão considerar-se iguais aos cidadãos”. Se não houvesse a disposição interior de servir, inclusive contra seus companheiros nativos, a dominação européia no Norte da África e na Índia não se teria passado como passou. Teria sido muito mais sangrenta.
Seria interessante reter que não fora o sipaio e o spahis terem contribuído para a dominação européia e não se compreenderia porque a palavra “sipaio” passou a ser usada na América Ibérica, especialmente na Argentina da primeira metade do século XX e algumas décadas depois de 1950, com o sentido de alguém que se comporta social e politicamente de acordo com valores e princípios próprios daquele estado de coisas que considera dominante. Dominante, não politicamente, note-se (afinal, a independência das colônias data, o mais tardar, de 1824), mas economicamente; mais ainda, diria espiritualmente. A aceitação, digamos ativa, de valores que se têm por intelectual e politicamente mais corretos, vale dizer capazes de explicar a realidade mais “cientificamente” que outros, essa aceitação leva à incorporação desses valores aos quadros mentais de muitos que têm interesses a defender e idéias a difundir – se não a pôr em prática. Para exemplificar, tomemos a difusão em amplas camadas de intelectuais e políticos (para não dizer dirigentes de empresas ou delas administradores) daquilo que, no fim do século XX, convencionou-se chamar de “pensamento único” – difusão/incorporação que corresponde a uma postura intelectual e emocional que vem de longe.
Voltarei ainda ao assunto.
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