Como os tempos são diferentes! Quando, nos Governos militares, o Comandante da ESG convidava alguém que, para a Imprensa, não era um favorito do Planalto ou do SNI, choviam comentários sobre o verdadeiro significado do convite do General-de-Exército que tivera a audácia de contrariar os todo-poderosos. A rigor, bem vistas as coisas da perspectiva do tempo, os convites eram apenas parte das prerrogativas do Comando e nada tinham que significasse divergência. No máximo, uma dúvida ou uma discussão. Mas nada que afrontasse o “princípio do chefe”: “Não duvidar, não discutir, não divergir”. Depois de todas as reformas que se fizeram com Castelo e, após ele, com a Junta Militar, para impedir que houvesse totens nas Forças Armadas, como os houve desde sempre, como Caxias e Osório no Segundo Reinado, não se tem notícia de que haja quem discuta ou duvide: os Comandantes mandam (e mandar é mais — ou é menos — que comandar) e todos, porque somos brasileiros, seguimos à risca o velho ditado: “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
Isto tudo para dizer que os protestos contra o fato de o Comandante da Escola Superior de Guerra ter convidado Stédile, o líder do Movimento dos Trabalhadores sem Terra, para falar aos alunos e possivelmente ao corpo docente, esquecem-se de que o Comandante apenas usou de suas prerrogativas e, pelo que se noticiou em seguida, teria convidado um intelectual gaúcho sabidamente anti-Stédile, para proferir a próxima conferência. Houve quem enviasse fax ou e-mail ao Comandante da ESG, sugerindo-lhe que convidasse Marcola ou Fernandinho Beira Mar para instruir os esguianos sobre os fins e os meios do crime organizado. Sem dúvida, à primeira vista, exagero fruto da paixão. Poderia parecer o mesmo que se, nos anos 50, quando o socialista e ex-trotskysta Mario Pedrosa fez conferências na ESG — que então se contrapunha ao ISEB como centro de discussão dos problemas brasileiros —, os que protestavam contra o fato mandassem dizer por telegrama que o próximo convidado deveria ser Luis Carlos Prestes. É preciso colocar as coisas no seu devido lugar: “terminus in rebus”, como diziam os antigos. É bom esclarecer que Mário Pedrosa não se colocava contra a Constituição.
O General Barros Moreira, Comandante da Escola, usou de suas prerrogativas. O problema surge quando os que não gozam de sua intimidade se perguntam quais os motivos que o teriam levado a assim proceder. Podemos levantar uma série de hipóteses sobre o porquê. E discutir, não mais do que isso, se uma delas é a que melhor explica o fato. Na qualidade de quem as fazia quando o General Rodrigo Otávio Jordão Ramos convidava alguém para falar na ESG, vou levantar algumas, tentando contribuir para a compreensão do comportamento daqueles que ficaram não só irritados, mas furiosos com o convite feito a Stédile. Talvez uma dessas hipóteses explique e explicite o fato que motivou, inclusive, a divergência dos Presidentes dos Clubes Militar e da Aeronáutica.
1ª. — Dada a cumplicidade evidente entre o Governo e o MST, é possível supor que alguém, possivelmente o Ministro da Defesa, tenha dito ao Comandante que seria bom que Stédile tivesse penetração no meio militar e, para começar, fizesse uma conferência na Escola. O Comandante, sabiamente, teria feito da idéia uma determinação e, para marcar sua posição, convidara o adversário de Stédile para fazer a próxima conferência.
2ª. — O Comandante considerou que o problema que o MST representa para as instituições é sério demais e que, por isso, a Escola Superior de Guerra deveria ouvir seu líder para que pudesse tomar posição. E em seguida convidou o opositor para que a Escola tivesse condições de fazer idéia o mais possível correta do problema da reforma agrária.
3ª. — O convite e as calorosas palmas que, dizem, coroaram a conferência seriam a conclusão de um processo, lento e pouco percebido, que se vinha dando desde 1965, quando era possível verificar, no contato pessoal e em conferências nas Escolas Militares, que Coronéis e oficiais mais jovens consideravam que os empresários eram os responsáveis pela miséria de grande parte dos brasileiros. Nessa hipótese, o General Barros Moreira seria um dos que, já naquela época, tinha restrições à elite (fosse ela composta por quem fosse, desde que ricos) e considerava que ela tinha enormes responsabilidades na crise em que o Brasil vive perpetuamente.
A aceitação da primeira hipótese esclareceria definitivamente o assunto, acrescentando um elemento no rol das acusações ao Governo Lula da Silva, dado como responsável por compor com os que defendem a destruição da ordem constitucional vigente.
A aceitação da terceira hipótese implica reconhecer fato dos mais graves: teremos chegado à previsão de Marx no “Manifesto Comunista”, quando diz que amplos setores das classes dominantes (Gramsci diria, especialmente seus intelectuais) aderem à revolução por ver que as antigas estruturas (no nosso caso, o Estado) já não têm mais o que dizer e dar à civilização. O fato é dos mais graves, porque os esguianos são, queiramos ou não, os “intelectuais” de parte das Forças Armada e do funcionalismo público, se não de alguns setores empresariais.
Pessoalmente, prefiro a segunda hipótese, embora a primeira não seja de descartar neste Governo que merece de fato ser julgado imparcialmente, mas não pelo processo de impeachment. Ocorre-me o processo contra Luis XVI pela Convenção e o discurso de Robespierre. Mas isto são outras histórias, subversivas. Da mesma maneira, a terceira não deve ser afastada imediatamente, ainda que o General Barros Moreira não partilhe desse sentimento antiempresarial. Por declarações suas que li, ele teria feito referências à elite, que teria a ganhar com a ampliação do mercado interno — que viria, diria eu, tendo em vista o contexto da discussão sobre a reforma agrária, depois que essa fosse realizada.
Que decorre da aceitação dessa segunda hipótese? Que o Comandante da ESG agiu dentro de suas prerrogativas e dentro do espírito que orienta a Escola. Houve, porém, um momento, a acreditar no que li, em que se desviou da conduta correta, que para todos é inspirada nos princípios, para não dizer nos ideais da ESG.
1 — O Comandante deve lembrar-se, com certeza, da lição de Tayllerand, que foi a Napoleão depois do assassinato do duque d’ Enghien e lhe disse, muito sabiamente: “Sire, mais que um crime, foi um erro”.
Em que consistiu esse “erro” que, para o cínico — mas sagaz — Tayllerand, era fato politicamente mais grave que um “crime”? O fato de que Stédile, como líder do MST, é co-responsável, senão objetivamente responsável pelos atos que seu movimento realiza por sua inspiração. Por isso é responsável não apenas por atos criminosos (violação da propriedade privada, seqüestro de pessoas, cárcere privado, formação de quadrilha etc. etc.), mas, sobretudo, anticonstitucionais. Anticonstitucionais porque o objetivo final do MST é subverter a Constituição e estabelecer outro Estado no lugar deste que aí está, vacilante e alquebrado, mas ainda formalmente vivo. Na República Federal da Alemanha (antes de 1989, disto estou certo), o MST, embora, como aqui, não tivesse registro, seria considerado anticonstitucional e suas ações seriam de fato tidas como contra a Constituição e a Lei, podendo ser, pois, alvo de ações policiais para restabelecer o Estado de Direito. No Brasil, com este Estado vacilante que aí está, nada acontece. Vistas as coisas desse prisma, têm razão os que falam em Marcola e Fernandinho Beira Mar, que afinal são também criminosos — só que não pretendem derrubar o Estado…
2 — O outro erro do General-Comandante foi ter dito, pelo que li, que concordava com os fins, mas não com os meios de Stédile. Ora, desde que a dialética deixou de ser propriedade privada dos stalinistas e sucessores, sabe-se que os fins não justificam os meios porque é pelos meios que esses fins se revelam na própria realidade. Isto é, por mais aceitáveis que fossem, em princípio, os fins perseguidos por Lênin, Trotsky e Stalin no início da revolução russa, esses se revelaram criminosos porque os meios utilizados para alcançá-los foram criminosos. No decorrer do processo político, os meios se tornam cada vez mais um fim em si mesmo.
O Comandante concordou com os termos em que o MST coloca a sua reforma agrária, desconhecendo a realidade econômica do país e, especialmente, sua inserção no mercado mundial. O erro consistiu em aceitar os fins, a reforma agrária do MST que objetiva a instalação de assentamentos em fazendas produtivas e o fim das fazendas de propriedade de multinacionais. Em outras palavras, afastar o Brasil do mercado internacional de commodities agrícolas. Já não digo tornar difícil o abastecimento das populações brasileiras, se começam a invadir fazendas produtivas. E não se trata de discutir se devemos ou não exportar commodities agrícolas. O fato é que até agora a economia internacional do Brasil depende dessa exportação (e de outras, também) e o Governo a que a Escola está subordinada a defende. O Comandante, assim, teria divergido…
3 — O General-Comandante errou, também, ao dizer — pelo menos se leu que disse — que, na briga entre dois garotos, quando o mais fraco perde, grita: “Estados Unidos”. Erro duplo, porque, por um lado, ninguém está clamando pelos Estados Unidos para resolver um problema interno e, por outro, porque essa declaração pode reforçar os que dizem que o movimento de 1964 foi feito com o aval e a ação interventiva norte-americanos. No que eu, pelo menos, discordo.
Li, não sei onde, que o líder do MST foi aplaudido de pé pelos que o ouviram. Não sei se os que aplaudiram deram suas palmas com reservas mentais (quanto aos meios). Para o MST, foram aplausos de pé, que nos concertos significam BIS. É difícil saber se houve ou não aquelas reservas mentais. Se não houve, nem houve o impulso de prestigiar o Comandante, será preciso considerar a terceira hipótese — que é trágica para todos os sinceros democratas e os que se consideram herdeiros dos ideais de 1964.
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