PREFÁCIO

de “Os Bacharéis na Política – A Política dos Bacharéis” 

 

     O livro de Teotonio – Francisco Teotonio Simões Neto – merece ser lido por várias razões, a primeira dispensando as demais: é livro de excepcional qualidade. Nestes tempos de partidos, tempos de homens partidos – como diria o poeta que oficialmente já não é o melhor do Brasil, depois do discurso do presidente Sarney na ONU -, “Os Bacharéis e a Política” é importante para os estudiosos da história brasileira ler trabalho que cuida não das pequenas minorias que sem dúvida tiveram seu papel na história, mas não puderam traçar o curso dos acontecimentos, mas sim daqueles que dominaram, governaram e até certo ponto fizeram a história.

 

     O trabalho de Teotonio é uma das primeiras tentativas recentes de estudar a história das ditas classes dominantes brasileiras; mas não é só isso. É a tentativa de perceber o funcionamento das articulações nos setores dirigentes, a qual assenta em pesquisas e numa visão libertária da realidade, a qual transparece já na epígrafe e passa pela dedicatória a este misterioso Julio Frank que tanto influiu na história dos vencedores em São Paulo, quem quer que ele tenha sido.

 

     Há outra razão que recomenda a leitura de “Os bacharéis”: ele conta a história dos bacharéis em um tempo em que, como diz nosso autor, os próprios bacharéis se renderam à interpretação falseada de seu papel na história e na política brasileiras. Eles foram mais importantes do que a crítica ao “bacharelismo” quis significar; sua influência vem do Império, estende-se pela República Velha onde se criou a lenda de que os bacharéis atrapalhavam o governo e a solução dos problemas do Brasil, e agora começa a substituir os tecnocratas de 1968, os quais se impuseram, difundindo a ilusão de que os bacharéis governavam por pareceres e de que o apego à forma da lei impedia o progresso nacional. Ora, o desrespeito à forma e ao conteúdo da lei, no decorrer desses vinte anos foi suficiente para demonstrar que é a vigência da lei e o apego à sua forma que garante os direitos individuais. Poucos são os que se recordam de que os Atos Institucionais números 1 e 2 respeitavam o instituto do “habeas corpus” cujos benefícios só podem ser requeridos se o espírito do bacharel prevalece. Quando esse espírito, dito nocivo ao Brasil, foi posto de lado com o AI-5, desceu sobre o país a parte mais negra da longa noite hobbesiana, que eu já previa e condenava quando apenas o crepúsculo começava a adensar-se sobre o que ainda restava de liberdades políticas no Brasil.

 

     Teotonio resgata os bacharéis, suas tradições, suas ligações fraternas – que superam as ideologias, as diversas posições políticas – e ao fazê-lo, abre caminho para a compreensão de muitos problemas mal explicados da política brasileira, mas sobretudo da política paulista.

 

     Pessoalmente, afora essas razões que me parecem ponderáveis, gostaria que “Os bacharéis e a política” fosse lido por outros motivos, não de ordem pessoal, mas metodológica: um, porque Teotonio introduz em nosso universo de cogitação – e introduz bem e com o respeito devido – as sociedades secretas que se construiram em torno do pequeno mundo dos bacharéis. Não será necessário compulsar o volumoso livro de Billington, Fire in the mind of men para mudar um pouco o parecer que sempre fizemos sobre as sociedades secretas e sua importância na história. Elas não existiram para nada, nem por nada; foram mais ou menos atuantes em determinados períodos do mundo moderno; fizeram revoluções ou trabalharam para sustentar o status quo; contribuíram para a ascensão social de muitos de seus associados aos quais decidiram conferir prestígio, riqueza e poder – se é que já não tinham. De um jeito ou de outro, foram importantes – e a evidência está em que apesar de a vida delas ter sido retraçada por alguns, hoje se tende a esquecê-las. Prova de que de fato seu segredo foi mantido e que seus membros morreram sem que os partidários da Ordem, ou os revolucionários soubessem quem estava por detrás de muitos fatos que não encontraram explicação satisfatória até hoje. Não escondo que o contra-argumento que padre Brown poderia esgrimir, fundado no bom senso, é ponderável: por não conseguir retraçar o papel das sociedades secretas na história dos grandes acontecimentos, pode dizer-se com quase segurança que não existiram. Ainda que fosse verdade a lógica do bom senso, pelo menos no caso paulista, relatado por Teotonio com a riqueza de pormenores que a segurança da sociedade permitiu, pode ver-se que a “Bucha” teve sua influência. Eu iria mais longe para dizer que foi a partir do instante em que a “Bucha” se cindiu e que as divisões registradas em seu seio se confundiram com as fissuras que se registraram no seio da aristocracia paulista, que São Paulo perdeu sua importância política. Na verdade, depois da cisão, os cargos eletivos e mesmo os executivos de livre nomeação dos governadores passaram a ser preenchidos por grupos políticos não ligados àqueles que seguiam as orientações dos Iluminados e dos seguidores desse misterioso Julio Frank, e se perdeu a noção de responsabilidade, progresso ou conservação que toda sociedade secreta possui.

 

     Quando falo das sociedades secretas falo sério; gostaria de ter a paciência que Teotonio devotou na pesquisa e escrita de seu livro para um dia estudar as ramificações da “Bucha”, sua cisão e o quanto essa cisão foi responsável pelo malogro do que chamo de “Projeto paulista”, traduzido na busca de quadros para uma administração pública racional e para uma transmissão liberal da cultura. A desunião entre democráticos e perrepistas – ligada à crise da “Bucha”, essa a minha hipótese, especialmente após 1932, permitiu que o “projeto gaúcho” fosse triunfante e o Brasil se atrasasse em sua evolução cultural e material. Não quero dizer que o projeto Armando de Salles Oliveira fosse liberal. Não. A meu juízo, ainda que perfunctório, sem tirar nem por, com todas as letras, foi um projeto Iluminista – não sei se no sentido da sociedade secreta dos Iluminados, mas ao menos no dos iluministas do século XVIII, dos quais Pombal foi em Portugal o exemplo marcante.

 

     O outro motivo que recomenda a leitura de “Os bacharáis e a política”, é que Teotonio discute tema para o qual gostaria de chamar a atenção dos leitores, especialmente daqueles que se dedicam à pesquisa de situações históricas: o da coterie. Em sua generosidade libertária, Teotonio liga-me indiretamente ao conceito. A idéia não é minha, pelo amor de Deus; busquei-a em Marx, que não conseguiu encontrar outra maneira de definir aquele estranho grupo que se reunia em torno do National, se não chamando-o de koterie – palavra francesa, que tem sua origem no alemão e que se traduz de igual maneira para o inglês, como a significar (a Koterie, a coterie e a cotery) que nas três linguas, nas três por diferentes que fossem e de fato o são, havia sempre uma “patota amiga”, pessoas que se identificavam por determinadas semelhanças construídas ao longo da vida de de cada um, as quais os reuniam na ação política e os levava a agir como um grupo social e político, inclusive de pressão. É conceito que, tomado de Marx, sugiro seja adotado como cânone de análise em breves passagens de “Os 45 cavaleiros húngaros”; cânone da maior relevância, pois a coterie se situa entre o partido (político tradicional ou funcional no sentido de Gramsci) e a classe, por um lado, e a sociedade secreta, por outro. A coterie não se define pela pertença a uma classe social no sentido marxista do termo, ou qualquer outro; ela não é uma concreção que se explicite enquanto conceito no reino da sociologia; ela é definidora de status e portanto cai no terreno da Antropologia – que me desculpem meus colegas sociólogos que andam fazendo incursões por essa coisa que se convencionou chamar de Ciência Política, a qual, conforme sentenciava antigo guerrilheiro, com o humor e a experiência da política revolucionária e do jornalismo político, é melhor praticada no Brasil pelos jornalistas.

 

     Os membros da coterie aproximam-se por semelhanças muito especiais: são republicanos em uma sociedade monarquista; apreciam a pintura impressionista quando é o neoclassicismo que está em voga; fazem círculos restritos para ouvir Mahler, quando o gosto imperante ainda é o romantismo a la Beethoven; sabem tomar vinho de marca e data com o requinte necessário; gostam do respeito às formas, mesmo quando se trata de seduzir a mulher do próximo, sobretudo nesse caso. São pessoas que além de usar bem a faca e o garfo à mesa, sabem como tratar os criados, com aquela distância senhorial que não os identifica com os reacionários, não humilha os inferiores, empresta ar de certa intimidade no seu relacionamento – que não vai além dos chinelos -, e não se diminuem ao sentar-se ao lado do chofer. Viajaram pelos mesmos países, freqüentaram os mesmos livros, tiveram semelhantes experiências amorosas; sabem o que vale um buquê de flores entregue no momento certo; um pedido de desculpas feito na hora aprazada, o envio de padrinhos para duelo no momento oportuno. Bebem juntos em determinados bares, freqüentaram as mesmas casas das senhoras famosas, mas nem por isso de vida menos fácil, lêem o mesmo jornal, identificam-se com o juízo dos mesmos críticos, fazem a sua especial opinião pública. São estilos de vida que compõem a tessitura da coterie. Por isso é que dela participam ricos e remediados que conseguiram descobrir o segredo da pertença e a necessidade de não violar certas regras não escritas sob pena de exclusão perpétua do grupo e degradação para a África social.

 

     Tudo isso está presente no livro de Teotonio. Será preciso acrescentar alguma coisa para dizer aos que não são de nossa coterie, que este é um livro que merece ser lido, meditado e cuja metodologia, discutida que seja, deve ser seguida em outros trabalhos, antes que os documentos que comprovam o triunfo dos vencedores desapareçam e ninguém mais saiba explicar por que os vencedores triunfaram e os vencidos não.

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Obs. – “Os Bacharéis na Política – A Política dos Bacharéis”, de Francisco Teotonio Simões Neto, está disponível, na íntegra, na página http://www.teotonio.org/teses