apresentado na Reunião da Associação Brasileira de Ciência Política, São Paulo
Apresento algumas idéias que, espero, merecerão a crítica e o aperfeiçoamento de parte dos colegas.
A relação entre segurança e poder não pode ser vista, apenas, da perspectiva das relações interestatais, embora elas sejam predominantes. Digo predominantes porque a idéia de segurança está sempre relacionada com a segurança do Estado, a qual pode ser afetada seja pela ação de outro Estado, seja pela intervenção de organizações e/ou forças não estatais de qualquer natureza.
No campo das relações interestatais é importante levar em conta que as decisões governamentais sobre a política internacional do Estado, quando tomadas à luz da segurança, são influenciadas pela visão de que o Diplomata deve ter sempre o General a sustentar suas iniciativas voltadas para a defesa do que se define, a cada momento e em cada caso especial, como interesse nacional. Isso, como diria o General de Gaulle, desde que haja um Estado. Se assim é, devemos levar em conta alguns elementos básicos que definirão não apenas o Poder entre as Nações, mas também o diferencial de poder entre elas.
O primeiro elemento a considerar decorre da Geografia. Não que procure enquadrar a política internacional de um Estado nos padrões de conduta inspirados nos ensinamentos de Mahan e MacKinder ou de quem os tenha seguido. Sem desprezar seus ensinamentos, é preciso ter sempre presente, como polemizava Yves Lacoste, que a Geografia serve, antes de tudo, para fazer a guerra. É a imensidão do território que, por assim dizer, engolirá quem se atrever a fazer a guerra convencional contra a China e a Federação Russa. Da mesma maneira que a posição insular foi preponderante na política da Grã-Bretanha como holder of the balance na Europa do século XIX, que terminou em 1914, como se costuma dizer. Do mesmo modo que é a posição insular (continental, está visto) que permitiu aos Estados Unidos passarem incólumes por duas guerras mundiais e que assegura – pensando sempre em termos de guerra convencional – a sua segurança na medida em que qualquer poder inimigo se dilui na razão direta da distância que separa a ilha-continente da Europa e da Ásia. Deve-se lembrar, pelo contrário, que a posição de ilha-continente, associada ao fato de o país ser a primeira potência industrial nos fins do século XIX (e a primeira potência financeira ao fim da primeira guerra mundial) impôs duras servidões aos Estados Unidos desde o momento em que Theodore Roosevelt encontrou, nos ensinamentos de Mahan, a justificativa – ou teria sido o incentivo? – para a conquista do canal do Panamá. Conquista, porque é conhecida sua frase: I took the canal .
As servidões decorreram não apenas da posição de ilha-continente – que obrigou o Estado norte-americano a ter esquadras nos dois oceanos – mas também do outro elemento a ser considerado: o dos interesses. Da perspectiva dos interesses, é preciso saber distinguir, na análise, os que são meramente econômicos dos que são primordialmente estratégicos. Diria que os investimentos diretos feitos no Exterior entram na categoria de interesses econômicos a serem defendidos. O canal do Panamá – excluídos da apreciação os superpetroleiros e os supertanques para transporte de cargas múltiplas lançados ao mar depois do fechamento do canal de Suez em 1956 – inclui-se entre os interesses primordialmente estratégicos , da mesma maneira que, hoje, os Estados Unidos consideram como seu interesse nacional o combate à droga procedente da América Latina e a garantia, ainda que retórica muitas vezes, da democracia representativa e dos direitos humanos naquelas regiões que, num determinado momento, forem consideradas estratégicas para a garantia da segurança do Estado norte-americano.
Se é fácil compreender o porquê de o canal do Panamá – da mesma maneira que os estreitos onde os Capitães de Conrad deixaram seus ossos – ser parte das razões de segurança dos Estados Unidos, é mais difícil entender porque colocar investimentos e democracia entre os interesses estratégicos que, se afetados, podem causar danos à segurança do Estado, no caso o norte-americano. Compreenderemos facilmente o que diz respeito aos investimentos se tivermos presente o problema da acumulação global do Capital, especialmente nesta fase conhecida como “globalização” que é, antes de mais nada, o momento da acumulação em que o investimento direto é fundamental para o Estado que o recebe e para a empresa que o faz, além de obrigar o Estado em que ela tem sede a sustentar seus direitos proprietários em qualquer parte do mundo. Isso porque uma das funções do Estado desde a época em que se construíram os impérios coloniais é defender os interesses de seus súditos no Exterior, especialmente se e quando coincidem com os interesses políticos ou econômico-sociais e integram a visão do mundo da elite de poder tal qual caracterizada por Wright Mills. Estamos, já agora, falando da interdependência de interesses privados e da elite de poder – portanto, lembrando Engels, do Estado visto como a primeira potência ideológica erguida sobre os homens. Essa interdependência dá-se no terreno da acumulação global do Capital, conduzida, nesta fase, pelo capital financeiro, cujo interesse é tanto produzir mercadoria, quanto fazer que o dinheiro produza dinheiro. Uma observação marginal, que reputo importante: no caso dos Estados Unidos, a garantia dos investimentos é tanto mais uma questão de segurança nacional, quanto boa parte deles foi feita no setor primário, especialmente minas e poços de petróleo, de cuja produção depende a economia nacional norte-americana. O mesmo se dirá dos governos inglês e francês na época dos impérios.
Sem dúvida, essas considerações devem ser ajustadas à realidade quando se considera o progresso dos armamentos, especialmente o desenvolvimento dos foguetes balísticos intercontinentais (os ICBM), a maior autonomia de vôo do Poder Aéreo e os progressos alcançados na tecnologia de propulsão nuclear e na balística, que permitem que os submarinos nucleares lançadores de foguetes aumentem o poder de qualquer nação na medida em que a relação poder/distância cresce em benefício do Estado agressor. Considerados esses progressos na tecnologia, qualquer Estado está sujeito a ver sua segurança ameaçada por mais que os satélites militares de observação possam detectar os preparativos de um Estado inimigo em potencial. É por isso que, modernamente, a posição de ilha-continente dos Estados Unidos, da mesma maneira que a imensidão do espaço chinês ou russo, deixa de ser um escudo protetor natural e a defesa estratégica muda de patamar e se torna teoricamente efetiva com o progresso dos dispositivos de dissuasão. Eles acabam levando a um jogo de soma zero em que se impõe ao adversário a escolha entre nada fazer ou defrontar-se com a destruição, teoricamente mútua, mas que aquele que dissuade espera não ser tamanha em seu território. Ainda da perspectiva do progresso dos armamentos, é preciso ver que, se por um lado, a ciência tornou possível a qualquer Estado lançar-se à aventura nuclear desde que esteja disposto a arcar com os custos dela, por outro lado, o progresso tecnológico no campo dos armamentos convencionais fez que apenas um Estado, no caso os Estados Unidos, possa ter, hoje, por causa dos custos, forças armadas em condições de travar uma guerra tecnológica, por assim dizer, no estilo daquela que foi travada contra o Iraque em 1991. Em outras palavras, se a ciência diminuiu o diferencial de poder entre as nações, por outro colocou em posição de inferioridade todos aqueles Estados que não têm condições financeiras de equipar seus exércitos para uma guerra que venha a ser travada no patamar tecnológico da Guerra do Golfo. Se no campo nuclear se pode dizer que diminuiu o diferencial de poder entre os Estados, no campo convencional – se é que a guerra do Golfo pode ser considerada convencional – dir-se-ia que a megapotência que emergiu do fim da Guerra Fria tem todas as condições, se e quando julgar conveniente e necessário, de impor manu militari suas decisões a outros Estados. Resta saber, porém, se a moderna tecnologia desenvolvida para o que se poderia chamar de guerra clássica, de atrito ou movimento, aumenta o diferencial de poder de um Estado quando se defronta com um tipo de guerra como a que se travou no Vietnã ou no Afeganistão contra os soviéticos – a menos que se pense que o Estado mais poderoso levará o confronto à sua extremidade lógica e fará dele uma guerra de destruição total, o que contrariaria o princípio de que os objetivos da guerra, na lição de Clausewitz, são antes de mais nada políticos.
A tudo isso é necessário acrescentar, considerando a Geografia e os armamentos, que a segurança internacional, como na cançoneta, balança entre dois extremos: a possibilidade
de grandes conflitos armados, como os denomina Bouthou, para a defesa de interesses econômicos ou estratégicos, e a ação coletiva para restabelecer ou impor a paz tal qual se quis que se regesse o mundo com a criação da ONU. A relação de forças entre Estados Unidos e Rússia e China, porém, além do direito de veto que paralisa a organização internacional, deixa as potências nucleares livres para resolver pendências que surgem em suas respectivas zonas de influência. Por mais que o idealismo norte-americano tenha combatido, em 1919 e no pós -1945, a idéia de que a política internacional é feita pelos Estados tendo em vista garantir sua segurança pelo controle de suas zonas de influência, aquelas em que seus interesses não podem ser afetados, a realidade acabou se impondo também à elite de poder dos Estados Unidos, especialmente porque os interesses norte-americanos estão, hoje, localizados praticamente em todas as partes do globo, especialmente na Europa, como sempre estiveram desde o fim da primeira guerra mundial. A América Latina, se é possível dizê-lo deixando de lado qualquer sentimento jingoísta, continuará sendo zona de influência preferencial por motivos a um tempo econômicos e estratégicos.
O problema que se coloca para a análise, no entanto, é que não é mais possível considerar apenas a Geografia, os armamentos e os interesses. Desde o dia em que o Governo norte-americano recusou, em 1921, a sugestão da Grã-Bretanha para que fossem perdoadas todas as dívidas de guerra contraídas pelas potências da Entente, o observador se deu conta de que estava diante de um fenômeno novo, que só conseguiu racionalizar depois da Segunda Guerra Mundial e da lenta, mas inexorável caminhada do mundo todo, inclusive o bloco soviético também atingido pela inflação decorrente do embargo do petróleo nos anos 1970, para a interdependência global dos mercados de capitais. O fenômeno novo foi a fragilização dos Estados por causa dos déficits orçamentários e das transações correntes de seus balanços de pagamento. Os países que eram apenas províncias de acumulação do Capital tiveram de resolver seus problemas recorrendo ao Fundo Monetário Internacional; aqueles, como a Grã-Bretanha, que apesar de seu poder relativo, inclusive no mundo das finanças, não conseguiam resolver seus problemas de balanços de pagamento e contas públicas, também tiveram de bater às portas da instituição-chave dos acordo celebrados em Bretton Woods. Os Estados Unidos, apesar de acumularem déficits homéricos na sua balança comercial e nas transações correntes em virtude, inclusive, de seu engajamento militar no além-mar, valeram-se de sua condição de primeira potência industrial e financeira – e, convém não esquecer, do fato de deter os direitos de senhoria porque o dólar é, a um tempo, moeda de troca internacional e moeda de reserva também internacional – para conseguir resolver os problemas do balanço de pagamentos mediante a atração dos capitais disponíveis no mundo industrializado e mesmo fora dele. Apesar de o dólar ser o que é, na medida em que o déficit na balança comercial só pode ser compensado pelas remessas de lucros e dividendos das companhias transnacionais e pela colocação de títulos públicos no mercado internacional, os Estados Unidos viram reduzido seu poder, ao menos nominalmente, se continuarmos medindo o poder de um Estado pelos antigos padrões. Contudo, o direito de senhoria e a posição do dólar como moeda internacional de trocas – moeda que o Tesouro norte-americano imprime sem controle de instituição pública alguma – os arsenais de que dispõem e a miríade de empresas que se espalham pelo mundo continuam assegurando aos Estados Unidos o poder incontrastável nas relações interestatais, sem contar que detêm, por força mesmo desse poder afirmado desde 1919 e consagrado depois de 1945, o controle das instituições que sobreviveram ao fim dos acordos de Bretton Woods, em 1971.
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