Creio que foi Paulo VI quem, pela primeira vez, disse que a Igreja Católica, no fim dos tempos, será de poucos. Ainda Cardeal, Ratzinger fez suas estas palavras, como pretendendo significar que o racionalismo do século XVII e o iluminismo do setecentos estavam ganhando terreno na surda luta de idéias contra os ensinamentos da Santa Sé.
Na visita que fez estes dias à Espanha , que começou por Santiago de Compostela onde foi recebido pelo Príncipe de Astúrias, Bento XVI voltou a manifestar sua preocupação com o futuro da Igreja, desta vez sem apontar aquelas duas grandes correntes de pensamento e cultura. Preferiu referir-se ao sentimento anti-Igreja, que reconhece vivo na Espanha, com raízes na década de 1930, falando de uma agressiva “postura laica” que também reconhece existir na França e na Inglaterra. E fez referência à lei descriminalizando o aborto aprovada, recentemente, no Governo socialista de Zapatero, que entrou em vigor há quatro meses. O problema imediato, para o Papa, é o “enfrentamento” e não o “encontro” entre fé e laicismo, no qual as raízes cristãs da Europa estão sendo esquecidas.
Pouco antes do 2º turno das eleições brasileiras, em outubro, Bento XVI alertava os Bispos do Maranhão dos problemas que preocupam a Igreja. Sua mensagem foi vista, em muitos círculos intelectuais e políticos no Brasil, como reforço da posição dos Bispos e grupos católicos que, antes do pleito, haviam tomado clara posição contra a candidatura Dilma Rousseff tendo em vista suas posições sobre o problema da descriminalização do aborto, para todos eles muito dúbias. Os que reagiram contra as palavras do Papa ergueram a bandeira do laicismo republicano: a posição dos Bispos e as palavras de Bento XVI tenderiam a um fundamentalismo medieval, esquecidos, o Papa e as maiores autoridades eclesiásticas brasileiras, de que o Estado brasileiro é um Estado laico.
É em torno da carta aos Bispos maranhenses e das reações que suscitou que teço as considerações abaixo.
Bento XVI está consciente de que, no Brasil, luta em duas frentes: uma, interna, em que se agrupam os defensores da Teologia da Libertação, que Ratzinger, Cardeal, já havia condenado em diferentes textos. Outra, externa, em que se aglomeram forças as mais diversas, desde os que defendem o Estado laico até o que pretendem consolidar as posições alcançadas nos oito anos do Governo Lula da Silva e cimentar as bases ideológicas do Estado-Partido no velho estilo leninista.
Na campanha da frente interna, o Papa sabe que a grande batalha será travada no próximo ano, quando se renovará a direção da CNBB. Talvez não venha a ser uma batalha napoleônica, mas, de qualquer modo, será estrategicamente decisiva, pois então se saberá com que forças Roma poderá contar nas fileiras comandadas por Bispos brasileiros. Na frente externa, sabe que a guerra será de atrito, longa e penosa, e que se travará não apenas para a tomada de posições no aparelho governamental − nos Três Poderes da República − mas para a conquista das consciências.
É preciso, pois, esclarecer as questões enquanto a paixão não nos impede que raciocinemos com clareza.
Qual é a história do Estado Laico no Brasil?
O Império consagrou a religião católica como religião oficial. A Constituição de 1924 dispôs em seu artigo 5º: “Art. 5º − A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu credo doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”.
A República foi laica − na Constituição de 1891. Se não estabelecia religião alguma como própria − oficial − do Estado, reconhecia, no entanto, o direito de todas as religiões a terem presença ostensiva na vida pública, ainda que não no Estado: “Art. 72, § 3º − Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum”. No artigo 70, porém, tenta marcar de maneira indelével o caráter laico do Estado: “Art. 70, § 1º − Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais, ou para as dos Estados: (…) 4º – Os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra, ou estatuto, que importe a renúncia da liberdade individual”. Apesar de que sacerdotes “seculares” (como são conhecidos os que não pertencem a Ordens, Companhias etc.) poderiam ser eleitores. Além disso, os constituintes de 1891 tinham consciência de que o caráter laico do Estado deveria ser garantido pelo ensino: “Art. 72, § 6º − Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. E também pela proibição de relações com cultos religiosos: “Art. 11: É vedado aos Estados, como à União: 2º – Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”.
Em 1934, quando já era sensível a influência do que depois se chamou de “castilhismo-borgismo” (de inspiração positivista) nos trabalhos da Assembléia Constituinte, a Constituição foi mais cuidadosa no cuidar das relações entre Igreja e Estado: “Art. 17 − é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) III – ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo”. Assinale-se, porém, que todos os cidadãos poderiam alistar-se, pertencessem ou não a Ordens, Congregações ou Companhias religiosas (art. 108). Por outro lado, como a significar que todos eram iguais perante a lei, seu art. 113, 1, rezava que não haveria “…privilégios…por motivos …de crenças religiosas”.
É interessante assinalar que o título IX do anteprojeto da Constituição de 1934 intitula-se “Da Religião”, e que seu artigo 105 estabelece: “Nenhum culto religioso ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relação de dependência ou aliança com os poderes públicos”. Observe-se que aqui são os cultos ou igrejas que não podem manter relação de dependência ou aliança com os poderes públicos. Na redação final, pelo contrário, veda-se à União, Estados e Municípios ter relação de dependência ou aliança com qualquer culto ou igreja.
Não se encontra na Constituição de 1934 referência ao ensino público leigo. Pelo contrário, reconhece-se, pelo artigo 153, que “O ensino religioso será de freqüência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis, e constituirá matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e normais”.
Tomem-se, igualmente, os incisos 5, 6, e 7 do artigo 113: “ 5 – (…) As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil. / 6 – Sempre que solicitada, será permitido a assistência religiosa nas expedições militares, nos hospitais, nas penitenciárias e em outros estabelecimentos oficiais…/ 7 – Os cemitérios terão caráter secular…sendo livre para todos os cultos a prática dos respectivos ritos em relação a seus crentes. As associações religiosas poderão manter cemitérios particulares, sujeitos, porém, à fiscalização das autoridades competentes. É-lhes proibida a recusa de sepultura onde não houver cemitério secular”.
A Carta de 1937, outorgada pelo último representante do castilhismo-borgismo positivista, tem um aspecto curioso: “Art. 119 − Perdem-se os direitos políticos (…) b) – pela recusa, motivada por convicção religiosa… de encargo, serviço ou obrigação imposta por lei aos brasileiros”. A liberdade religiosa, que não deve ser pretexto para o cidadão eximir-se de seus deveres civis, é assegurada no artigo 122, 4: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para este fim…”. O inciso 5 restringe a propriedade de cemitérios: “Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal”. Não se encontra, também nesta Carta, qualquer referência ao ensino leigo nos estabelecimentos oficiais, mas a não obrigatoriedade do ensino religioso é expressa: “Art. 133 − O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de freqüência obrigatória por parte dos alunos”.
A relação entre o Estado e cultos e igrejas está regulada no artigo 32, que repete a redação da Constituição de 1891: “É vedado à União, aos estados e aos municípios: … b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”.
O direito de religiosos serem eleitores dominou, a quanto me recordo, parte dos debates na Assembléia Constituinte que se reuniu em 1946. É bom lembrar que, em 1945, Vargas ainda ditador, anunciadas as eleições que se realizariam em dezembro daquele ano, a Liga Eleitoral Católica desdobrou-se no alistamento de eleitores, tarefa burocrática nada fácil dado o fato de as últimas eleições terem sido realizadas em 1933 e a população ter crescido muito desde então. Mas, voltando aos debates na Assembléia Constituinte de 1946, triunfaram, finalmente, os que se recusaram a criar obstáculos ao alistamento de religiosos vinculados a Ordens.
A Constituição de 1946 segue o disposto em 1934 e 1937 sobre as relações entre o Estado e cultos e igrejas: “Art. 31: À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: …II – estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes o exercício”. Segue também, em suas grandes linhas, no que estabelece sobre as garantias individuais (artigo 141), as anteriores. A liberdade de consciência e de crença é inviolável, da mesma maneira que é livre o exercício de cultos religiosos (§ 7º); ninguém será privado de direitos políticos por motivo de crença religiosa (§ 8º); haverá a prestação de assistência religiosa às Forças Armadas (§ 9º). No que se refere aos cemitérios, embora continuem seculares, volta-se a permitir que as confissões religiosas neles pratiquem seus ritos (§ 10º). No tocante ao ensino, o artigo 168, V, tem como princípio que o ensino religioso “constitui disciplina das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno…”.
O laicismo do Estado deveria manifestar-se na organização da família, mas também o faz a meias. O título “Da Família” aparecerá apenas em 1934 e voltará em 1937 e 1946. O casamento é indissolúvel e o casamento religioso terá os mesmos efeitos do civil desde que respeitadas as formalidades legais.
A Constituição de 1967 − votada livremente pelo Congresso, convém anotar − não contém a proibição de criação de cultos ou subvenção a eles, mas registra, pelo contrário, no seu artigo 19, III, b, que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, “instituir imposto sobre… os templos de qualquer culto”. Retoma, no seu artigo 149, § 1º, b, a Carta de 1937 no que se refere à perda de direitos políticos: eles se perdem “pela recusa, baseada em convicção religiosa, filosófica ou política, à prestação de encargo ou serviço impostos (sic) aos brasileiros em geral…”. No que se refere aos Direitos e Garantias Individuais (artigo 153), assegura a igualdade de todos perante a lei “sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas” (§ 3 º); a plena liberdade de consciência, assegurando “aos crentes o exercício de cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes” (§ 5º); a garantia de que “ninguém será privado de qualquer de seus direitos” por motivo de crença religiosa ou de convicção filosofia ou política, “salvo se o invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta, caso em que a lei poderá determinar a perda dos direitos incompatíveis com a escusa de consciência” (§ 6º) e no § 7º, a prestação de assistência religiosa às Forças Armadas e auxiliares sem caráter de obrigatoriedade.
No tocante ao ensino, o artigo 176 é claro, a partir da noção de educação: “Art. 176 − A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola. / § 2º – Respeitadas as disposições leais, o ensino é livre à iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive mediante bolsas de estudo. / § 3º – A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas: V – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais e grau primário e médio”.
No tocante à Família, é sensível mudança com relação à Carta de 1946. Reza o artigo 175: “A família é constituída pelo casamento e terá direito proteção dos Poderes Públicos./ § 1º – O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos”.
A emenda constitucional nº 1 (EC1), de 20 de outubro de 1969, editada pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, usando das atribuições que lhes conferiam o Ato Institucional nº 5 e o Ato Institucional nº 16, é de fato uma nova Constituição. Vigorou até a promulgação da Constituição de 1988.
O artigo 9º da EC1 veda no seu inciso II, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o exercício ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de interesse público, na forma e nos limites da lei federal, notadamente no setor educacional, no assistencial e no hospitalar…”.
Os direitos políticos perdem-se “pela recusa, baseada em convicção religiosa, filosófica ou política, à prestação de encargo ou serviço impostos (sic) aos brasileiros em geral” (art. 149, § 1º, b, reiterado sob outra forma no art. 153 § 6º). No artigo 153, assegura aos “crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes” (§ 5º). É assegurada a prestação de assistência religiosa às Forças Armadas e Auxiliares.
No capítulo dedicado aos direitos e garantias individuais, repete a redação primeira da Constituição de 1967, da mesma maneira, no que se refere à Educação.
No que se refere à Família, a EC1volta à Constituição de 1946: “Art. 175 − A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos./§ 1º – O casamento é indissolúvel”.
Fixemo-nos agora na Constituição de 1988, que é a que nos governa.
A Constituição de 1988, a “Cidadã”, avança no que diz respeito à liberdade de consciência: “Art. 5º, VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
A privação dos direitos políticos dar-se-á por invocação de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política para “eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (art. 5º, VIII, reiterado sob outra forma no artigo 15, IV).
Nenhuma menção especial à prestação de assistência religiosa às Forças Armadas, cuja referência, na estranha redação do inciso VII que se refere a “entidades” militares, parece ser contornada: “VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”. O inciso VIII simplesmente reitera que “ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa…”. Mas não há, tampouco, qualquer menção ao laicismo do ensino. Pelo contrário, o artigo 210 estabelece no seu § 1º que “o ensino religioso de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.
Há mudanças no tocante à família. O divórcio é reconhecido no artigo 226, § 6º, da mesma maneira que no § 3º se reconhecera a “união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”.
Hasteada sobre estas bases constitucionais arvorar-se-á a bandeira do Estado Laico.
Que caracteriza um Estado laico? À primeira vista, a separação entre Estado e Igreja, qualquer que seja a denominação desta. Para os defensores do laicismo, creio, não será suficiente constar da Constituição que Estado e Igreja são separados. O que deverá interessar é como se dão, na prática, as relações entre estas duas instâncias, o Século e a Fé.
Não será necessário descer à prática cotidiana para ver que, no Brasil republicano, o laicismo do Estado, proclamado em 1891, não tem o caráter preciso dado pela definição − antes de tudo porque, depois de 1934, não se faz mais referência expressa ao fato de que o ensino deva ser leigo. Pelo contrário, encontramos em diferentes constituições a garantia do ensino religioso nas escolas públicas, ainda que de “matrícula facultativa… ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno”.
Note-se que a Constituição de 1891 era taxativa ao dizer que o ensino seria leigo e, para marcar a separação entre Estado e Igreja, afirmava que os religiosos de Ordens nas quais imperasse o princípio da obediência não poderiam alistar-se como eleitores. Não poderiam fazê-lo porque o voto de obediência lhes retirava a liberdade de escolha, condição do cidadão. Mais que de inspiração positivista, o texto ia na direção do pensamento liberal europeu da época.
Se quisermos descer à prática, hoje bastará lembrar o “Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil”, firmado em 13 de novembro de 2008 e aprovado em 7 de outubro de 2009 pelo Congresso Nacional. Nele, há a expressa reiteração do disposto na Constituição no que se refere ao ensino religioso: “Artigo 11, § 1º − O ensino religioso católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação”.
Por que tomo o ensino como parâmetro para medir o caráter laico do Estado? Basicamente porque admitir que o ensino é leigo ou que, religioso, integra as disciplinas das escolas públicas, facultativa que seja a matrícula, é reconhecer, como dizia a Constituição de 1824, que a matéria é constitucional; vale dizer: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições dos Poderes Públicos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos” (Art. 178).
À luz dessa definição dada pelo art. 178 da Carta de 1824, o “ensino religioso” pode ser visto como sendo inscrito em 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e, depois, em 1988 entre os “Direitos Políticos e individuais dos cidadãos”. Os responsáveis pela redação desses sucessivos textos constitucionais não atentaram para o fato (ou não quiseram fazê-lo) de que, tendo sido o ensino religioso garantido como disciplina que ocupasse horários normais nas Escolas públicas, estaria a Religião sendo inscrita como um direito do cidadão e, assim, invadindo os espaços do Estado. Isso se dá pela simples e boa razão de que os ensinamentos religiosos, mesmo traduzidos por diferentes Igrejas, serão transmitidos pela Escola ¯ o que, aliás, quiseram evitar os que, na França, lutaram pelo ensino laico.
Jean Jaurès, o grande líder socialista francês assassinado às vésperas da Grande Guerra, traduziu o sentido da escola leiga para o pensamento liberal europeu do fim do século XIX em discursos e artigos de jornal sobre a grande contenda que dividiu a França. Em 23 de agosto de 1892, escrevia: “Não bastará para os representantes da democracia republicana aceitar o princípio do laicismo: eles não devem apoiar as escolas leigas, eles devem amá-las e trabalhar com paixão para seu desenvolvimento (…) porque o laicismo do ensino se confunde com o próprio princípio da República. O laicismo do ensino é a liberdade e a razão na educação das consciências, e sem a razão, sem a liberdade íntima dos espíritos, que seria da República? (…) A República é o direito de todo homem, qualquer que seja sua crença religiosa, de ter sua parte na soberania. Assim, como fazer de uma crença religiosa qualquer a base da educação, quando ela não é a base da soberania? Repudiando a monarquia cristã, a Igreja repudiou o ensino cristão, no sentido sectário e dogmático da palavra”. Em 1895, falando na Câmara dos Deputados, disse a certa altura: “… se a idéia mesma de Deus tomasse uma forma sensível, se Deus, ele próprio, se erguesse, visível, sobre as multidões, o primeiro dever do homem seria recusar-lhe obediência ou tratá-lo como igual com quem se discute, mas não como senhor a que se submete”.
Jaurès aponta o cerne do problema: o ensino leigo “é a liberdade e a razão na educação das consciências”. Para não dizer que vai mais longe que Nietzsche, pois para ele, não é que Deus tenha morrido, é que Deus não existe e, caso existisse, deveria ser visto como um homem igual aos outros homens…
Desde a Kulturkampf (literalmente, luta pela cultura, luta cultural) na Alemanha do século XIX, quando foi perseguida e teve suas escolas fechadas, a Igreja Católica conhece o que seja a disputa pela “educação das consciências”. É por isso que os Papas insistem em que seja possível à Igreja ter suas escolas e, quando possível, em que a religião católica seja ensinada nas escolas públicas. Esta é, para ela, uma questão de princípio em que não pode transigir sob pena de perder a luta pela conquista das consciências.
A questão do aborto é a bandeira das tropas de assalto que estão na primeira linha. A posição contrária ao aborto faz parte, sem dúvida, da visão que o Papado tem da vida. Foi em nome da vida que se aglutinaram as forças que conduziram o ataque à candidatura do PT. Para o Papado, todavia, o que está em jogo não é apenas do aborto. Já João Paulo II se erguia contra a Cultura da Morte, estranha maneira de apontar os efeitos da campanha em favor não apenas do direito ao aborto, mas também à eutanásia consentida. Se as hostes que se dispõem a combater a Igreja sob a bandeira do laicismo do Estado defendem o aborto em nome de um vago direito da mulher a dispor de seu próprio corpo, já agora há, nelas, quem reclame a legalização da eutanásia consentida em nome do direito de cada um (que se transforma em quase obrigação de garanti-la aos enfermos, para os que os assistem) a ter uma morte digna, sem sofrimentos sem sentido.
Na sua prédica aos Bispos do Nordeste, Bento XVI insistiu neste ponto e, mais ainda, no direito de os símbolos sagrados, como, por exemplo, a Cruz com Cristo crucificado, serem expostos em próprios públicos. Afirmou: “a presença de símbolos religiosos na vida pública é ao mesmo tempo lembrança da transcendência do homem e garantia de seu respeito”.
Poucos foram, no entanto, os que perceberam que aquilo que está de fato em pauta, quando se vê a contenda entre os defensores do Estado laico contra as pretensões da Igreja Católica de que não haja recuo na questão do aborto, é saber se de fato o ensino religioso, a Religião, é ou não uma ”questão constitucional”. Vale dizer, questão que diz respeito “aos limites e atribuições dos Poderes Públicos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos”. O problema com que o Brasil em breve se defrontará é este.
A defesa que Bento XVI faz da Vida tal qual a entende a Igreja Católica é uma de suas preocupações. Mas há outras, mais inquietantes. É necessário ter paciência e ler com atenção suas diretivas aos Bispos; só assim saberemos qual é o ponto em torno do qual a batalha se travará no Brasil, daqui para frente, ponto este pouco discernível na fumarada da luta pela descriminalização do aborto.
Voltemos à Kulturkampf e a Jean Jaurès.
Ainda que a citação seja longa, que disse Bento XVI, como se tivesse presente as ponderações de Jaurès que transcrevi acima? “… política e fé se tocam. A fé tem, sem dúvida, sua natureza específica de encontro com o Deus vivo que abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. Com efeito, sem a correção oferecida pela religião até a razão pode tornar-se vítima de ambigüidades, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia, ou então aplicada de uma maneira parcial, sem ter em consideração plenamente a dignidade da pessoa humana. Só respeitando, promovendo e ensinando incansavelmente a natureza transcendente da pessoa humana é que uma sociedade pode ser construída. Assim, Deus deve encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, econômica e particularmente política. Por isso, amados Irmãos, uno a minha voz à vossa num vivo apelo a favor a educação religiosa, e mais concretamente do ensino confessional e plural da religião na escola pública do Estado”.
À parte a questão de que “política e fé se tocam”, que Bento XVI coloca com sua autoridade, há outra, cujo esclarecimento é fundamental para que se vejam com clareza os rumos que tomará a contenda: é a Religião uma “questão constitucional”? A Religião diz respeito aos “limites e atribuições dos Poderes Públicos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos”?
A análise das Constituições brasileiras que se sucederam à de 1891 levaria a uma resposta positiva, pois algumas permitem o ensino religioso nas escolas públicas. Isto significa, a meu ver, reconhecer às Igrejas quaisquer o direito de ensinar, portanto, de procurar conquistar as consciências, moldando-as conforme seus princípios. Ainda quando se exclui o ensino religioso das escolas públicas, mas admite-se que possa ser ministrado nas escolas particulares, reconhece-se que a Religião faz parte da visão do mundo de grupos sociais, mais ou menos extensos, que professam determinada fé.
A questão que se coloca não é saber se o Estado que assim estabelece em sua constituição é laico ou não. É saber até que ponto “fé e política se tocam” sem que os fundamentos do Estado sejam atingidos mortalmente. É saber, como dizia Jaurès, se “sem a razão, sem a liberdade íntima dos espíritos” tal qual a entendiam os liberais que fizeram a Kulturkampf e os que triunfaram na batalha do ensino leigo a França, a República estaria em perigo.
Esta é a questão que a Igreja deve responder antes que a solidariedade social se quebre e caminhemos para dia turvos, encobertos pela fumaça das bombardas que começaram a troar.
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