UMA NOVA ERA DE CONFLITOS?

Palestra de Abertura do Seminário “Conflitos internacionais em suas múltiplas dimensões” – PUC-SP – 08/09/2008

 

 

 

    Será exagero, sem dúvida, falar em “nova era de conflitos”. Talvez se acrescentássemos um agá à palavra “era”, estivéssemos mais próximos da realidade internacional. Porque, afinal, a hera (com agá) é “uma planta trepadeira, com raízes adventícias, que se mantém verde durante todo o ano”. E o dicionário faz questão de elucidar aos menos esclarecidos: “A parede estava completamente coberta pela hera. A hera chegava ao mais alto muro do jardim”.

 

    Por que esse recurso à Botânica para falar de relações internacionais, vale dizer, de relações entre Estados? Porque a imagem da hera (com agá), no lugar de era (sem agá), é a que melhor permite se compreenda o que temos diante dos olhos desde que Vladimir Putin chegou à Presidência da Rússia. De fato, a partir do momento em que Ieltsin deixou o poder e um novo ator adentrou o palco, os Deuses, como na tragédia grega, lançaram ao solo uma semente da hera (com agá), que o novo Presidente da Rússia fez questão de adubar com paciência, na esperança de que, nos demais Estados, houvesse quem entendesse de Botânica e soubesse ver que essa nova variedade de planta tenderia a recobrir não um muro qualquer, mas aquele que circunda toda a cena em que se representa a grande Commedia Dell’Arte — que é aquilo que, na Academia, insistimos em chamar de Relações Internacionais e que para muitos, se não todos nós, se passa naquilo que costumamos chamar de Sociedade Internacional.

 

    Gostaria de que se meditasse, um instante que seja, sobre uma idéia, a de que as relações que se dão entre os Estados − podendo, em cena, aparecer outros atores, menores − nada mais são do que o espetáculo que os Deuses encenaram desde que decidiram que seria melhor dar uma trégua em suas querelas e observar o que os humanos fariam quando, como o poeta pôde cantar: ” Onde foi Tróia / onde foi Helena, / (…) onde houve, não / há mais agora / um ramo inclinado…

 

    Os Deuses se recolheram; mas antes quiseram que o “ramo inclinado” fosse plantado na Terra e que fosse um ramo de hera (com agá), da espécie que haviam cultivado com o amor possível no Olimpo; e se puseram rindo desde o primeiro instante em que o colocaram no chão para que brotasse. Surgiu uma espécie toda nova, com fragrâncias insuspeitadas, que, uma vez absorvidas, nunca mais deixariam que os humanos fossem como eles, os Deuses, os haviam criado — porque o mundo em que viviam era um mundo em que Espaço e Tempo se confundiam, e o Tempo, como cantaria também o poeta, havia passado a ser um “tempo de partido, / tempo de homens partidos”.

 

    E, para que os humanos pudessem sonhar que ainda dirigiam seu próprio destino, os Deuses armaram para os homens o grande mural em que transformaram o mundo − e deram a cada um dos que nele representavam a linha geral da nova tragédia-embuste: na mascarada, em que haveria sempre os bons e os maus, todos saberiam que eram movidos pela cobiça por poder e pela avidez por dinheiro.

 

    A hera (com agá) recobriu o painel-mundo. Os que representavam os maus sabiam desde o início do Tempo-mundo que os Estados sempre perseguiram Espaço, Poder e Glória. Os bons esqueceram-se de que havia passado o momento em que os imperadores, vindo de suas batalhas, entravam em Roma com o consentimento do Senado e tinham a seu lado, no Triunfo, o escravo que lhes dizia numa cadência tumular: Sic transit gloria mundi. O odor da hera (com agá) os havia inebriado e, como representavam o papel dos bons, não souberam decodificar as falas e interpretar os gestos daqueles com os quais contracenavam.

 

    A hera (com agá) desabrochou e cobriu o grande mural que circundava o palco do mundo porque sempre encontrou na terra das batalhas o adubo com que se alimentar. Crescida, fez que os que aspiravam sua fragrância criassem a idéia de que havia eras (sem agá) de conflitos e eras (de novo sem agá) sem conflitos. De novo, um ardil que não é da Razão como pretendeu Raymond Aron, mas dos Deuses, que permitiram que os humanos que faziam o papel de bons − e aqueles que, como nós, observamos o desenrolar da tragédia-embuste – se esquecessem de que o conflito nas relações internacionais não existe apenas quando a Guerra se torna real; tal como a guerra, o conflito, os entendidos sabem, existe desde que se manifesta a intenção hostil. É para ela que devemos estar atentos se desejamos acompanhar a tragédia-embuste que os Deuses montaram para os humanos como se fosse uma Commedia Dell’Arte.

 

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    Creio chegada a hora de vermos sob novo prisma a Guerra Fria e, mais especificamente, o que dizem ser o seu fim.

 

    Ninguém negará que a Guerra Fria foi marcada por uma oposição extremamente dura entre dois sistema de vida – para sermos claros, entre duas diferentes maneiras sistematizadas de ver a acumulação do Capital e de ver o papel dos indivíduos na sociedade e suas relações com o Estado.

 

    Churchill, ainda Primeiro-Ministro e responsável pela condução da guerra travada pela Inglaterra, talvez seja quem melhor tenha visto essa oposição da maneira correta − isto é, as duas faces dela.

 

    Uma, a mais brilhante e por isso mais enganosa, e que, por isso, passou a ser tida como a única − como se fosse possível moeda de uma só face −, era a oposição entre o sistema político que nos acostumamos a chamar de ocidental e o soviético. Esse foi o ponto de vista a partir do qual nós, os que habitamos o lado do mundo dito ocidental, passamos a encarar a crise que se abriu logo após Ialta, ou, se quisermos ser mais precisos, depois da ocupação de Berlim pelo Marechal Zhukov e a rendição incondicional do III Reich que deixava de existir.

 

    A outra face era geopolítica, a que não admite, no instante em que pesamos a moeda para traçar políticas ou fazer considerações sobre ela, viés ideológico algum.

 

    A imagem da Cortina de Ferro − criada em Fulton, 1946 − reproduz de maneira precisa as duas faces da Guerra Fria. Por um lado, a ocupação de parte da Europa Central e de toda a Europa Oriental pela União Soviética simbolizava a oposição entre duas maneiras de ver o mundo; por outro lado, assinalava o fato de que os países que haviam conduzido a guerra do lado “ocidental” haviam perdido a oportunidade de continuar influenciando política e economicamente os países do Leste europeu.

 

    A divergência entre visões do mundo marca a política de Churchill desde 1917, quando insiste na intervenção na Rússia para derrotar os bolchevistas, que via como inimigos da civilização. Todavia, é necessário ter presente que não é apenas o desejo de restabelecer o reinado dos Romanov que o leva a ter essa posição tão dura e tão fora da realidade militar.

 

    Afora a pretensão de restabelecer os direitos do Czar, havia o temor de que os bolchevistas, uma vez consolidado seu poder, voltassem suas atenções para a Índia, a Jóia da Coroa Britânica. Não é possível esquecer que Churchill foi um dos últimos defensores do Império Britânico. E convém, também, aceitar que ele tinha uma intuição digna de registro sobre quais seriam as intenções últimas do bolchevismo.

 

    Não exagero. Na Introdução da biografia de Trotsky, escrita pelo General Dimitri Volkogonov, podemos ler:

    “O trem blindado estava a caminho de Kiev (…) À mesa, sentava-se um homem em uma camisa… do Exército, caneta na mão. Diante dele, havia telegramas do 3º e do 4º Exércitos da Frente Oriental então avançando para Tobol. O Grupo Sul fazia bons progressos para o Turquestão. (…) Mas o homem na túnica estava pensando em outras coisas. Seu secretário tomava o ditado: ‘A derrota da República Soviética Húngara, nossas outras derrotas na Ucrânia e a possível perda da costa do Mar Negro, ao lado de nossos êxitos na frente oriental, alteram de maneira significativa nossa orientação internacional… A situação aparece diferentemente quando consideramos o Leste. Não pode haver dúvida de que o nosso Exército Vermelho é incomparavelmente uma força mais poderosa nos campos da Ásia e na política mundial do que nos campos europeus. Estamos agora diante da possibilidade de uma longa espera enquanto os acontecimentos se desenrolam na Europa, mas um período de atividade na Ásia. O caminho para a Índia pode, neste momento, estar aberto para nós, e ser mais curto do que o caminho para a Hungria Soviética ’ ”.

 

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    Churchill e Trotsky eram capazes de ler o mapa-múndi… E Churchill nunca deixou de ler esse mapa. É por isso que, já delineada a derrota alemã na União Soviética, faz a Stalin a cínica proposta de transformar a Europa Oriental e os Bálcãs em zonas de influência dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, e dos soviéticos − reservando a Grécia como área de caça da Inglaterra. Que não pôde ser mantida como tal pelo Governo de Attlee, levando à Doutrina Truman e ao início ostensivo da Guerra Fria.

 

    Essa visão geopolítica levou Churchill a opor-se a Roosevelt e a Eisenhower no que dizia respeito ao local em que deveria ser aberta a Segunda Frente. Ele, mais que De Gaulle, que também fazia política olhando para o mapa, insistiu, sem êxito, em que os exércitos aliados invadissem os Bálcãs, partindo da Itália onde já se encontravam, para chegar a Viena antes que os soviéticos. Em vão tentou influenciar os norte-americanos.

 

    Foram muito poucos os que pensaram como Churchill; daí, a Guerra Fria ter sido travada, “do ponto de vista ocidental” – assim Conrad intitulou o romance em que estuda os russos sob o Czar e a Okhrana – como um conflito entre duas concepções do mundo, quando na realidade era mais que isso. E esse “mais” era o domínio de extensas massas territoriais e o poder que advinha do controle das populações que nelas habitavam e da exploração de seus recursos naturais. Controle e exploração econômica que vinham sempre aliadas ao desenho do que se poderia chamar de “primeira linha de defesa”.

 

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    Na Europa, a União Soviética estabeleceu-a na Alemanha Oriental e na Europa Oriental; os Estados Unidos e alguns países da Europa ocidental, inicialmente na República Federal da Alemanha e na Grécia. Nas outras regiões do globo, procurou-se também estabelecer uma linha de defesa, através de tratados com Governos que permitiam a construção de bases militares e faziam associações políticas para tornar efetiva a doutrina da dissuasão. Os Governos eram débeis e as situações se revelaram fluidas demais para que se exercesse um controle cerrado. O fim do Pacto de Bagdá, a perda da Indochina pela França e, depois, do Vietnã pelos Estados Unidos, a permanência da China Popular sob Mao, a existência de Cuba malgrado a crise dos mísseis e a condenação da OEA, a continuação da crise no Oriente Médio e a situação calamitosa da África mostraram a fragilidade da posição geopolítica dos que o diziam defender o Ocidente.

 

    São considerações geopolíticas e não ideológicas (semelhança de regimes) que levam à ampliação da OTAN, para nela incluir Espanha, Portugal e Turquia. Sem dúvida, os europeus, em 1949, sobretudo os Seis que depois darão início à Europa comum, desejam manter seu regime político e suas tradições quase milenares. Para os Estados Unidos, no entanto, mais que a defesa das liberdades democráticas e do livre mercado (que sem dúvida pesava nas considerações de Dean Acheson), importava a certeza de que a Europa ocidental não fosse controlada pela União Soviética, vista como um Estado com ambições imperiais de domínio do mundo para impor por toda parte a visão do mundo de seus dirigentes.

 

    Essa preocupação com a defesa do território da Europa não será novidade para os que se recordam do planejamento militar norte-americano a partir de 1934, tendo em vista a possibilidade de os Estados Unidos entrarem em guerra. Lembrar-se-ão dos planos Arco-íris, dando como certa a perda da Europa e do Norte da África para a Alemanha de Hitler. A Europa Ocidental foi, durante a Guerra Fria, a primeira linha de defesa dos Estados Unidos; esquecer esse pormenor é não compreender o que os atores fazem no grande palco. Dessa perspectiva, o discurso que Churchill pronunciou em Fulton, em 1946, foi o epitáfio de uma política internacional inspirada na Geografia. Foram muito poucos os que pensaram como ele; daí, a Guerra Fria ter sido travada, “do ponto de vista ocidental”, como um conflito entre duas concepções do mundo.

 

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    O fim da Guerra Fria foi visto como o triunfo da Democracia e do sistema econômico capitalista-liberal sobre os sistemas econômicos de planejamento centralizado. As proposições de Fukuyama sobre o fim da história, cujo êxito foi fugaz, consagraram o triunfo dessa visão − que ele volta a colocar na ordem do dia, analisando a hostilidade hoje latente entre a Rússia e os Estados Unidos. Tomados pela idéia de que a Guerra Fria era o conflito não armado entre duas visões políticas e econômicas do mundo, foram poucos, muito poucos, os que deram ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear a importância que teve nas relações entre os Estados Unidos e a União Soviética.

 

    Foi o embaixador brasileiro Araújo Castro quem viu o real significado desse documento concertado pelos Governos de Washington e Moscou e depois transformado em carta constitucional outorgada pelos dois “grandes” ao mundo sob o amparo da ONU: o TNP congelava o Poder Mundial. A partir de 1968, não havia mais por que temer o confronto real entre os dois gigantes nucleares. O perigo, a partir desse tratado, passou a residir na vontade dos países ainda sem armas nucleares de controlar o ciclo completo do átomo e entrar para o Clube Atômico.

 

    A derrubada do Muro de Berlim, e o que a ela se seguiu, a unificação da Alemanha e o fim da ocupação soviética da Europa Oriental, foi saudada como o triunfo de uma concepção do mundo liberal-democrática e de livre mercado. Sucede, no entanto, que, no afã de construir uma nova ordem mundial em que os Estados Unidos apareciam como o novo guia do mundo, foram também muito poucos os que viram que a hera (com agá) não havia morrido na Rússia por falta de cuidados. Entre eles, os planejadores da OTAN.

 

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    Creio oportuno abordar assunto que, embora não diretamente ligadas à exposição que faço, ainda assim poderá ser útil ao entendimento dos problemas que procuro examinar. Gostaria de chamar a atenção para o estabelecimento, por parte dos analistas de um governo, do que imaginam ser o comportamento dos governantes do Estado em exame e sua adequada compreensão.

 

    Isso nos remete àquilo que Kennan chamou, certa vez, de planejamento militar em tempo de paz. Deixemos o “militar” de lado, por ora, e vejamos o que entendo por “compreensão”.

 

    Como procede o analista? Tem diante de si uma série de fatos e deve examiná-los a partir de premissas fundadas no conhecimento dos elementos que, a juízo de todos ou quase todos os que trabalham com esse tipo de informação, orientam a conduta dos governantes sob análise. Esse tipo de método tem um calcanhar de Aquiles: o analista atribui importância a esse ou aquele elemento e despreza ou minimiza a importância de outros. A escolha daquilo que se considera importante é condicionada, claro está, pelo clima intelectual em que ele vive e pela visão do mundo que molda, se assim posso dizer, a maneira pela qual vê as coisas.

 

    A cultura em que muitos analistas vivem nos Estados Unidos e nas suas áreas de influência tende a privilegiar elementos quantitativos. Quantos de nós não se recordarão do esforço que se fez nos anos 1970 para quantificar o Poder Nacional, buscando, inclusive, dar um peso a fatores tais como a adesão da população às políticas de Governo, e a coesão de uma dada população em torno de determinados valores? Tudo isso leva a que, na análise de uma situação e nas sugestões para planejamento de ações destinadas a enfrentar o que pode vir a ser uma ameaça aos interesses do Estado ou do Governo a que o analista serve, haja um momento em que se atribuem intenções. O sábio brocado romano “O pretor não julga intenções” é quase sempre deixado de lado, pois, se não se atribuírem intenções aos atores cuja conduta se examina, o estudo se tornará improdutivo e deverá ser descartado pelos superiores – que, eles também, costumam atribuir intenções a partir da maneira pela qual vêem as coisas, imersos que estão numa determinada cultura da organização a que pertencem ou do grupo social em que construíram sua visão das coisas.

 

    A análise que se fez da Rússia a partir do fim da União Soviética foi e continua sendo fundamentalmente quantitativa: PIB total, população, Forças Armadas. O elemento qualitativo que entrou nessa análise depois do fim da URSS, afora o esforço de medir a adesão da população às políticas de Governo, foi o juízo que se fez sobre o comportamento do Presidente Ieltsin e do grupo que o cercava, logo chamado, pela analogia com as tradições da Máfia italiana e norte-americana, de “Famiglia”. O somatório de elementos quantitativos que apareciam como negativos, de tendência decrescente, levou ao desprezo com que se encarou a Rússia e sua diplomacia. Por isso, ele respondia não apenas ao método de análise; também (aliás, parte do método) ao desconhecimento ou à não importância dada ao que se poderia chamar de Forças Profundas – não no sentido em que Renouvin emprega o termo, mas num outro, mais voltado às mentalidades, que tem a ver com o peso da tradição política e cultural de um povo, tradição essa que tem maior ou menor influência nas decisões dos que estão no Governo e dirigem a política geral do país que se estuda.

 

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    Feitas essas observações, podemos voltar a examinar a situação que se criou depois do fim da União Soviética.

 

    O exame dos fatos não pode deixar de considerar a importância que se atribuiu a superioridade militar dos Estados Unidos. Depois da Primeira Guerra do Golfo, a travada para restabelecer a soberania do Kuwait, James S. Corum, professor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército dos Estados Unidos, pôde escrever: Os acontecimentos no Golfo Pérsico na verdade foram dramáticos. (…) Para a maioria dos militares norte-americanos, e a maioria da opinião pública, a guerra do Golfo pareceu provar que a tecnologia americana apresentava uma vantagem tão esmagadora que os Estados Unidos poderiam aplicar a mesma formula (usada para vencer Saddam Hussein) para derrotar qualquer potencial inimigo de maneira rápida, eficiente e decisiva − e a baixo custo”.

 

    Essa apreciação, já não sobre o potencial, mas sobre o poderio militar norte-americano, combinada com os resultados da análise quantitativa do potencial russo, fez que não se desse a importância devida ao fato de Ieltsin, na crise da intervenção da OTAN na antiga Iugoslávia, haver enviado pára-quedistas para ocupar o aeroporto da capital do Kosovo. A todos pareceu um gesto histriônico destinado a marcar posição como defensor dos povos eslavos. Apenas isso.

 

    Ademais, qualquer consideração que se pudesse acrescentar a essa visão das coisas foi abafada pela necessidade de combater o terrorismo − e nesse combate, o apoio de Ieltsin era conveniente, apesar da debilidade objetiva do Estado russo, além de o Governo russo necessitar do apoio político dos Estados Unidos para levar avante a guerra na Chechênia.

 

    Referi-me atrás ao fato de os planejadores da OTAN não terem perdido o hábito, salutar, de ter o mapa sempre diante dos olhos. Foi sem dúvida em função do “planejamento militar em tempo de paz” − que implica fazer sempre a escolha do inimigo principal num determinado terreno − que se tomou a decisão de expandir a área de atuação da organização militar e política criada para fazer face aos exércitos soviéticos na conjuntura internacional de 1949. Uma decisão estratégica que não poderia esquecer a Grande Política, cujo centro, no Pós-Guerra Fria, era a construção da nova ordem mundial. Daí, seguramente vencendo as restrições impostas pela memória dos anos passados, aceitar que a Rússia participasse de algumas reuniões da organização, que se expandiu.

 

    O cenário em que se representa a Commedia Dell’Arte é mundial − e os conflitos igualmente devem ser vistos da perspectiva de seu caráter global. Inclusive o terrorismo. Ainda que atos terroristas sejam localizados e seja difícil atribuir sua execução a um Estado Maior único, a necessidade de estar sempre pronto, de levar sempre em conta o “En garde!”, faz que o combate ao terrorismo interfira (auxiliando ou criando restrições) na estratégia da Grande Política. No que aqui nos interessa, foi o pretexto de combater o terrorismo que levou à guerra no Afeganistão e à construção das bases logísticas de apoio na periferia da Rússia, na Ásia Central. Cobiça pelo poder e avidez pelo dinheiro − os dois elementos estão presentes nesse conflito que se eterniza e que contém os germes de um conflito maior, envolvendo o Paquistão e o Talebã, não se conhecendo ainda até onde poderá influenciar as relações do Paquistão com a Índia.

 

    O conflito maior, hoje, localiza-se novamente na Europa, e, pela segunda vez, a Rússia, ainda que não mais a União Soviética, é o adversário potencial. O conflito russo-georgiano prestar-se-á durante anos a múltiplas interpretações. A União Européia e os Estados Unidos, esquecidos da intervenção da OTAN na Iugoslávia e do reconhecimento da independência de Kosovo (e das advertências da Rússia para que não o fizessem), restringem-se ao fato de a Rússia ter invadido território da Geórgia.

 

    A Rússia fixou sua posição: “Não devemos esquecer – declarou o Ministro do Exterior russo – o papel daqueles que durante esses anos todos estão em conivência com o regime militar de Mikhail Saakashvili; que lhe forneceram armas ofensivas em violação das normas da Organização da Segurança Européia e da União Européia, que o desencorajaram a assumir obrigações de não usar a força, que estão alimentando um clima de impunidade em torno dele, inter alia, no que se refere às suas ações autoritárias destinadas a esmagar a dissidência na Geórgia”. O Governo russo, acrescentou, está “preocupado com o fato de alguns terem falhado em tirar conclusões objetivas da agressão” contra a Ossédia do Sul. E o Presidente Medvedev anunciou: “Uma decisão deve ser tomada com base no que está acontecendo no terreno. Considerando o desejo livremente manifestado pelos povos da Ossédia e da Abkhazia, e guiado pelas provisões” destes e daqueles documentos internacionais (que citou), “assinei decretos reconhecendo a independência da Ossédia do Sul e da Abkhazia pela Federação Russa”.

 

    A posição russa não é daquelas que se pode considerar segura. O Presidente Medvedev não conseguiu, como esperava, o apoio expresso do Grupo de Xangai − as Repúblicas da Ásia Central e a China. Apesar desse isolamento diplomático na sua área de possível influência, Moscou ainda tem um trunfo da maior importância, que são o petróleo e o gás que a Rússia fornece à Europa. O que, considerando a dependência da Europa desse combustível, torna igualmente menos firme a posição dos europeus. É importante, nesse quadro, dar atenção à posição da Turquia, guardiã do acesso ao Mar Negro, onde está a esquadra russa.

 

    As tensões entre os dois países já se manifestam: Moscou julga que Ancara não cumpriu com o rigor necessário o Tratado de Montreux que impõe restrições à navegação militar pelos estreitos – e o auxílio humanitário norte-americano à Geórgia foi enviado em navios de guerra. O jogo, portanto, é entre os Estados Unidos e Rússia − com o que voltamos a 1945, os Estados Unidos tendo a vantagem de a Rússia não dispor, como podia a União Soviética, das forças concentradas no Pacto de Varsóvia.

 

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    Para terminar, gostaria ainda de chamar atenção para aquilo que considero os fatores profundos que estarão sem dúvida influenciando a ação dos dois jogadores principais mais a Europa.

 

    A Rússia ainda abriga o desejo secular de ser o defensor dos povos eslavos e, eventualmente, dos cristãos ortodoxos que estão fora de suas fronteiras. A essa lembrança, diria, da missão da Terceira Roma, há de somar a memória das invasões vindas do Ocidente real: os Cavaleiros Teutônicos (lembremo-nos do Alexandre Nevsky de Eisenstein), Napoleão e Hitler. A inclusão dos Estados bálticos, da Polônia e da República Checa na OTAN, sem contar a presença norte-americana em países da Ásia Central e no Afeganistão, contribuem para criar a sensação de que está cercada. Os foguetes que os Estados Unidos instalarão na República Checa e na Polônia a pretexto de impedir ataques vindos do Irã reforçam essa percepção de ameaça.

 

    Os Estados Unidos e a Europa guardam a memória de Munique, 1938, e seguramente ainda alimentam a certeza que se construiu, depois de 1939 e depois de Pearl Harbour, de que a resistência diplomática e a ameaça de transformá-la em militar é a única maneira de conter a ambição expansionista de qualquer Estado. Mais do que ideologias.

 

    É esta a tragédia-burlesca que está sendo encenada sob nossos olhos.

 

    Os Deuses já não lutam entre si. Deixaram que o Destino, que cada um pode construir deixando-se ou não governar pela húbris, decida o que será de nosso futuro.

 

    Muito obrigado.

  

 

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