O Ministério de Jânio Quadros trouxe uma surpresa: para o Ministério da Guerra, o Presidente escolheu o Marechal Odílio Denys, Comandante do I Exército no 11 de Novembro de 1955. Para o Ministério da Marinha, foi buscar o Almirante (R-1) Silvio Heck, Comandante do cruzador Tamandaré, que se opusera à “novembrada”, na qual Denys desempenhara papel da maior importância. Na pessoa do Brigadeiro Grum Moss, companheiro de idéias do Brigadeiro Eduardo Gomes, encontrou o Ministro para a Aeronáutica. A política econômica, desde o início, lembrou seu governo em São Paulo e sua preocupação com a inflação e o equilíbrio orçamentário. Para alcançar seus objetivos nesse campo, não hesitou em retirar subsídios à gasolina e ao gás engarrafado (ocasionando da noite para o dia um aumento sensível de preços), ato que contribuiu para a derrota do candidato janista à Prefeitura de São Paulo, Emílio Carlos.
Sua política externa voltou-se inicialmente para a África e procurou defini-la na ONU por ocasião da votação na Assembléia Geral de moção condenando o colonialismo português. Conhecida a determinação de votar contra Portugal, cedeu às pressões (políticas e até mesmo sentimentais) do Governo de Lisboa, tendo sido finalmente decidido que o Brasil se absteria, mas com uma declaração de voto expressando sua condenação da política portuguesa.
Dois fatos marcaram sua intenção de libertar-se do que seria o dilema “EUA ou URSS”: autorizou o envio de uma missão comercial à República Democrática Alemã (o Brasil não mantinha relações diplomáticas com o regime comunista alemão), ao risco de indispor-se com o Governo da República Federal Alemã. E concordou com a viagem do Vice-Presidente Goulart à República Popular da China, a China de Mao Tsé-tung.
Até hoje não se conseguiu entender o porquê da condecoração a Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul. O Ministro da Economia de Cuba, já conhecido por suas posições revolucionárias, voltava de uma reunião da Organização dos Estados Americanos em Punta del Este, onde se tinha oposto à criação da Aliança para o Progresso, política com a qual o Presidente Kennedy esperava deter o avanço esquerdista nas Américas (o objetivo era impedir que Castro – portanto, a URSS – ampliasse sua área de influência) mediante incentivos à realização de reformas básicas, especialmente as agrária e da educação. A visita de Guevara ao Brasil não fora programada e tomou os políticos de surpresa. Tanto maior quando se soube que o Presidente da República havia conferido a Che Guevara a comenda mais importante da República. A primeira tentativa de explicação foi que Jânio pretendia demonstrar, com isso, sua simpatia à Revolução Cubana exatamente quando as relações de Cuba com os Estados Unidos passavam por uma de suas piores fases. Outra era mais simpática ao Presidente: que atendera, com a condecoração, apelo do Núncio Apostólico para que o Brasil intercedesse junto ao Governo cubano para que, se não cessasse, pelo menos diminuísse sua pressão sobre a Igreja Católica. A segunda hipótese ganhou terreno depois de sua renúncia, mas não se sabe, ao certo, até hoje, o que levou Jânio a condecorar o líder guerrilheiro.
Os sete meses do Governo Jânio Quadros não foram tranqüilos pela maneira como tratava o Congresso e pela reação dos Partidos à marginalização a que parecia condená-los. No processo, Lacerda teve papel da maior relevância. Depois de haver convencido a UDN a lançar a candidatura Jânio Quadros, passou a ter posição crítica, cada dia mais dura, com relação ao Governo que ajudara a eleger. Poderíamos dizer que a crise política que existia, e ninguém a procurava esconder, ganhou momentum quando Lacerda foi à televisão denunciar que Jânio Quadros tramava um golpe de Estado. No que se baseava? Numa conversa que, segundo ele, tivera com o Ministro da Justiça, a convite deste, Oscar Pedroso Horta. Durante essa conversa, Pedroso Horta o convidara a participar de um golpe que fecharia o Congresso e permitiria a Jânio realizar as reformas sociais, econômicas e políticas que julgava necessárias. Lacerda poderia dar sua colaboração, dadas as boas relações que mantinha com os militares que se haviam oposto a Juscelino. Lacerda recusou, foi à televisão e denunciou o fato, logo desmentido por Horta. No dia seguinte, as lideranças do Congresso decidiram transformar o Congresso em Comissão Geral (de investigações) e convocar Pedroso Horta para depor. Era o 24 de Agosto e procedimentos regimentais faziam que a convocação de Horta não fosse imediata.
A 25 de Agosto, Dia do Soldado, pela manhã, Jânio Quadros, ao lado dos Ministros militares, políticos e convidados especiais, presidiu o desfile militar com que tradicionalmente a data era comemorada. Não se observou qualquer alteração em sua fisionomia ou no tratamento dado aos militares. Do palanque presidencial, Jânio dirigiu-se ao Palácio do Planalto e os Ministros ao Ministério da Guerra, onde Marinha e Aeronáutica saudariam, como de costume, o Exército na pessoa do Ministro da Guerra. No início da tarde, as rádios e televisões anunciaram que o Presidente Jânio Quadros havia renunciado.
O relato a seguir foi-me feito pelo Almirante Silvio Heck.
A condecoração de Guevara não afetara em nada a lealdade dos Ministros ao Presidente. A prova isso estava no comportamento deles no desfile. Finda a cerimônia, Denys, Heck e Moss dirigiram-se ao Ministério da Guerra e pouco depois foram surpreendidos com uma ordem do Presidente, chamando-os a Palácio com urgência. Lá chegados, foram conduzidos ao gabinete presidencial. Enquanto esperavam ser anunciados, puderam ouvir, apesar da porta do gabinete estar fechada, gargalhadas. Entraram. Lá estavam Jânio, Horta, Quintanilha Ribeiro, Chefe da Casa Civil, e José Aparecido, Secretário particular. O Presidente foi direto ao assunto: “Chamei-os para comunicar-lhes que renunciei à Presidência. Peço aos senhores que vão para o Rio e tomem as providências necessárias para garantir a segurança”.
Os Ministros ficaram perplexos, atordoados. Moss não conseguiu esconder sua emoção. Os três fizeram dramático apelo ao Presidente, mas em vão. Retiraram-se, então, e no Ministério da Guerra discutiram a situação.
Nenhum dos Ministros sabia explicar o que havia acontecido ou o que estava acontecendo. Decidiram, depois de demorado exame da situação, que Moss fosse ter com o Ministro da Justiça e lhe transmitisse o apelo dos três para que o Presidente reconsiderasse sua decisão.
Nesse ínterim, Jânio já embarcara para a base aérea de Cumbica, em São Paulo − depois se soube que levara a faixa presidencial.
Moss encontrou-se com Horta em seu apartamento. O Ministro estava arrumando as malas, e recebeu o Brigadeiro em trajes menores. Moss transmitiu-lhe o apelo dos Ministros militares: “Que o Presidente regresse a Brasília e os Ministros militares o irão receber no aeroporto, prestando-lhe as honras de Chefe de Estado”. Horta foi seco: “Se os senhores tivessem feito o que ele lhes disse e ido para o Rio, ele poderia ter voltado”. A conversa encerrou-se aí.
Moss voltou ao Ministério da Guerra. De novo, os Ministros militares fizeram uma análise de situação e chegaram à conclusão de que, ao dizer para que fossem ao Rio, Jânio pretendera, se eles o tivessem feito, aparecer perante a opinião pública como vítima de um golpe militar. Chegados a essa conclusão, decidiram tomar todas as medidas de segurança que se impunham.
As crises institucionais têm de seguir seu curso. O Congresso reuniu-se sob a presidência do Senador Auro Soares de Moura Andrade. Instalada a sessão, leu-se a carta em que Jânio comunicava ao Congresso sua renúncia. Nela, Jânio dizia ter sido “ vencido pela reação… baldaram-se os meus esforços para conduzir esta Nação pelo caminho de sua verdadeira libertação política e econômica… Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive, do exterior. Forças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração… Saio com um agradecimento, e um apelo. O agradecimento, é aos companheiros que, comigo, lutaram e me sustentaram, dentro e fora do Governo e, de forma especial, às Forças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo nesta oportunidade”.
Houve quem desejasse discutir a situação, levantando a hipótese de golpe militar. Dois Deputados, um do PTB, outro do PSD, atalharam o processo, argumentando que a renúncia era um ato unilateral de vontade e que não cabia discussão. Auro endossou o argumento e imediatamente proclamou que, de acordo com a Constituição, estando o Vice-Presidente em viagem ao Exterior, o Deputado Ranieri Mazzilli, Presidente da Câmara, deveria assumir a Presidência. Assim foi feito e, uma vez no exercício da Presidência, Mazzilli nomeou o General Ernesto Geisel Chefe para a Casa Militar.
Mal refeita da surpresa da renúncia, a opinião pública foi outra vez surpreendida por manifesto dos Ministros militares contrários à posse de Goulart pela ação que desenvolvera no Ministério do Trabalho e suas ligações com os comunistas. A crise institucional, supostamente resolvida com a posse de Mazzilli, transformou-se em crise militar, ainda mais séria que a de Novembro de 1955.
O Brasil viveu dias de angústia. O espectro da guerra civil pairou sobre o País, na medida em que, no Rio Grande do Sul, o Comandante do III Exército, General Machado Lopes, ergueu-se contra a decisão dos Ministros militares em nome da defesa da Constituição. O Governador Leonel Brizola assumiu a liderança política do protesto, criando o que se chamou de “Cadeia da Legalidade” − rádios que tendo a central de transmissão no Palácio Piratini, conclamavam à resistência ao “golpe” em nome da legalidade. O Ministro da Guerra demitiu Machado Lopes do Comando do III Exército, nomeando o General Cordeiro de Farias para substituí-lo. Cordeiro não chegou ao Rio Grande do Sul, ficando entre Paraná e Santa Catarina. De Brasília, partiu ordem para que a FAB bombardeasse o Palácio Piratini. A ação dos Sargentos da base aérea impediu que os aviões levantassem vôo para cumprir sua missão. Os Comandantes dos I, II e IV Exércitos guardaram silêncio. Registrado o impasse militar, os políticos reunidos em Brasília cuidaram de encontrar uma solução pacífica para a crise.
Os Ministros militares permaneciam firmes em sua posição: Goulart não poderia assumir a Presidência e, na qualidade de Chefe de Estado, ser o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas. Estando na China, ao inteirar-se da situação, Goulart voou de volta para o Brasil. Não tendo segurança de como seria recebido em Brasília, pousou em Montevidéu, e concordou, depois de muita parlamentação, com a solução aventada por políticos: ele tomaria posse como Presidente da República, mas em sistema parlamentarista.
Em tempo muito curto, o Congresso votou a Emenda Constitucional n° 4 que instituía, por meio de Ato Adicional, o Parlamentarismo no Brasil. A sessão do Congresso Nacional em que a emenda foi promulgada permite ver com clareza como se distribuía o Poder no Brasil. Em seu discurso, o Presidente do Congresso, Senador Auro Soares de Moura Andrade (que teria importante papel no desenlace da crise de março/abril de 1964) enumerou “as mais altas autoridades civis do Brasil. Estão sentados à Mesa o Chefe do Poder Judiciário e o Chefe da Igreja Católica de Brasília. (…) A todos eles, particularmente ao Poder Judiciário, à Suprema Corte e aos demais Tribunais, assim como ao Exmo. Sr. Arcebispo faço, nesta hora grave da vida nacional, profundo, sincero e angustioso apelo para que eles, que são representantes de poderes tão desarmados quanto o nosso…”. E mais adiante, referiu-se às Forças Armadas: “Faço daqui um apelo às Forças Armadas, aos Generais, aos Almirantes, aos Brigadeiros; faço daqui um apelo aos soldados e marinheiros do Brasil para que compreendam que o Congresso de sua Pátria deu em si quanto podia dar em favor da ordem, em favor da paz, em favor da tranquilidade dos lares e do trabalho dos homens brasileiros. Que abram a Constituição e leiam que nela está escrito que não há força nenhuma que possa ultrapassar os limites da lei.”
O Deputado Raul Pilla, incansável batalhador pelo sistema parlamentarista, foi escolhido pelas Mesas das duas Casas do Congresso para ser o único orador da sessão. Depois de lembrar sua luta pelo parlamentarismo, da mesma forma que a de Silveira Martins, Rui Barbosa e Assis Brasil, concluiu sua fala, dizendo: “Lançamos hoje apenas o plano, o desenho no papel de um novo edifício. Temos de levantar, pedra por pedra, dia após dia, o novo prédio. Fato histórico, para as gerações que hão de vir…”.
Regressando ao País, Goulart tomou posse como Presidente da República parlamentarista.
O parlamentarismo resultou de uma emergência e de uma estranha relação de forças em que os Ministros militares saíram vencidos e tanto os políticos tradicionalmente refratários a qualquer solução radical, como Brizola e os que com ele formaram na Cadeia da Legalidade saíram triunfantes. Mas, bem pesadas as coisas, foi o triunfo das esquerdas. Dir-se-ia que Goulart havia cedido em seus poderes por manobra tática. Tanto assim é que o Ato Adicional (a EC-4) continha dois artigos que deixavam às claras que o Congresso não estava certo de haver cedido tanto quanto proclamara o Senador Auro de Moura Andrade, nem fornecera aos “pedreiros” que iriam construir o novo prédio, como dissera Raul Pilla, os instrumentos necessários para tal.
Dizia o artigo 22: “Poder-se-á completar a organização do sistema parlamentarista de governo ora instituído, mediante leis votadas, nas duas casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros.” O artigo 25 complementava a manobra tática: “A lei votada nos termos do artigo 22 poderá dispor sobre a realização de plebiscito que decida da manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial, devendo, em tal hipótese, fazer-se a consulta plebiscitária nove meses antes do término do atual período presidencial”.
Para que se tenha idéia do clima político que se instalou no Brasil a partir da posse de Goulart, basta lembrar que, em 1962, o Congresso Nacional, em sessão tumultuada realizada em meio a rumores de pronta decretação do estado de sítio, votou lei estabelecendo que o plebiscito se realizaria a 8 de janeiro de 1963, muito antes dos nove meses previstos na Emenda Constitucional n° 4. Realizado, o plebiscito deu a vitória aos que pretendiam a volta do Presidencialismo, vale dizer a reintegração de Goulart nos poderes da primitiva Carta de 1946.
Nos próximos textos trataremos das crises do Governo João Goulart.
– segue –
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