O Governo Médici resume todo o drama do movimento de Março de 1964. Levado a cabo para impedir a desnaturação do Estado e a tomada do poder pelos comunistas aliados aos que pretendiam implantar a República Sindicalista sonhada por Brizola, as forças que impulsionaram aquele movimento tiveram de haver-se com problemas tanto na área civil quanto na área militar. O Governo Castelo Branco defrontou-se desde o início com as reservas, se não com a hostilidade, do empresariado urbano e dos grandes proprietários de terra. Mais importante, porém, para que se possa compreender o processo que terminou a 1º de Janeiro de 1979, é ter presente que os Presidentes Castelo, Costa e Silva e Médici tiveram de fazer face a oposições no seio do Exército, sobretudo.
Castelo Branco, um liberal, precisou enfrentar a pretensão de alguns Generais de dar ao movimento direção contrária à que ele desejava. O exemplo mais gritante foi a posição do General Mourão Filho, recusando-se a obedecer a uma ordem do Superior Tribunal Militar. Também o General Justino Alves Bastos, que comandava o III Exército, teve a intenção de apelar aos “granadeiros” para impedir que a Revolução fosse desvirtuada. Convém lembrar que, no dia 31 de Março, o General Justino comandava o IV Exército e só aderiu ao fim da tarde daquele dia. Vencida essa oposição, Castelo Branco soube impor ao corpo de Oficiais-Generais sua autoridade − contestada, no entanto, por um grande número de Coronéis, Majores e Capitães que fizeram do Ministro da Guerra, depois do Exército, General Costa e Silva, seu candidato à sucessão de Castelo Branco.
A resistência à idéia de Castelo Branco de fazer de um civil seu sucessor não é a única marca registrada dessa oposição que representava o que chamei várias vezes de Partido Fardado. Mais que os Oficiais superiores (Coronéis e Tenentes-Coronéis), foram Capitães e Tenentes – que tomaram a si, nos IPMs instalados para investigar atos subversivos de corrupção em todos os campos (também em algumas Universidades e Colégios de Aplicação) – os que criaram as maiores dificuldades para o primeiro Presidente do período militar. O Presidente Castelo Branco só pôde controlar o ímpeto desses jovens Oficiais com a edição do Ato Institucional nº 2, quando a Comissão Geral de Investigações teve condições de dirigir, de fato, os processos contra corruptos e subversivos (não havia, ainda, luta armada organizada).
O Governo Costa e Silva, mais preso à Constituição que o seu antecessor, teve, desde o anúncio de sua candidatura, o apoio do empresariado. Já antes de sua posse, a oposição armada dera sinal de si com o atentado no aeroporto de Recife, vitimando um Almirante. Costa e Silva enfrentou, no regime constitucional, as manifestações de rua que foram num crescendo – fosse em virtude da existência de estudantes que, por “excedentes”, não conseguiam matricular-se nas faculdades de sua escolha, fosse contra a “ditadura militar” e contra o “imperialismo norte-americano” − embora, como assinalado no artigo anterior, a Imprensa fosse livre, os Tribunais igualmente e, sobretudo, o habeas corpus fosse a garantia de que não haveria abuso de autoridade ao se tentar evitar a desordem. Muitos foram os que, considerados presos políticos, foram soltos antes de Dezembro de 1968, inclusive de quartéis, por ordem judicial, atendendo a pedidos de habeas corpus.
Costa e Silva e os Comandos militares não tiveram condições institucionais nem pessoais de conter a revolta nos quartéis quando a Câmara dos Deputados negou permissão para que o Deputado do MDB que pronunciara infeliz discurso considerado ofensivo às Forças Amadas fosse processado pelo Supremo Tribunal Federal. Seguiu-se, como visto − num ambiente tenso, quando em praticamente todas as unidades militares havia um sentimento de revolta − a edição do Ato Institucional nº 5, que marcou a segunda fase do processo: aquela em que, de fato, a total liberdade de expressão e, este o ponto essencial a meu ver, o habeas corpus para os crimes contra a segurança nacional foram suspensos.
Se o AI-5 foi o recurso pensado para coibir as manifestações de rua e permitir um combate mais intenso à subversão, serviu também para impedir que o Partido Fardado rompesse a ordem hierárquica das Forças Armadas. Foi amparado nele, como visto, que a Junta Militar que assumiu o poder quando do impedimento físico de Costa e Silva reafirmou a autoridade dos Generais sobre os jovens Oficiais com a edição do AI-17 e o decreto da expulsória. Dado o avolumar das ações armadas, especialmente, nesta fase do processo, de assaltos a bancos e a quartéis − sendo de ressaltar o ataque ao QG do II Exército em que morreu um soldado −, o combate aos inimigos do regime passou ao primeiro plano das preocupações do Governo.
A bem da verdade, é preciso dizer que, da mesma forma que o Presidente Costa e Silva foi surpreendido em Belo Horizonte pela votação da Câmara dos Deputados, não havia, nesta primeira fase da censura à Imprensa e do combate à luta armada, órgãos institucionalizados encarregados dessas atividades. Os primeiros censores que chegaram à redação do jornal “O Estado de S. Paulo” eram funcionários da Divisão de Diversões Públicas da Secretaria de Segurança. Depois, o responsável pela censura foi um Coronel servindo na II Região Militar, havendo um funcionário estadual encarregado de notificar as redações do que não poderia ser publicado. Só quando o Governo Médici ia a meio é que a Polícia Federal em São Paulo assumiu essa função, controlada sempre por Brasília.
Duraram pouco as esperanças − motivadas, como dissemos, pelo primeiro discurso proferido por Médici − de que a longa noite hobbesiana estivesse chegando ao fim. Semanas depois de assumir, o Presidente veio a São Paulo e proferiu um discurso duro, não deixando dúvidas de que, dadas as circunstâncias, tudo continuaria como tinha sido até então.
O combate à subversão armada, quando pensamos em termos de organização, foi improvisado. O exemplo de São Paulo é, desse ponto de vista, ilustrativo de como o Governo foi apanhado de surpresa por seus adversários. Quando os assaltos a bancos começaram a ganhar intensidade, verificou-se que havia descoordenação na apuração dos fatos: DOPS, Polícia Federal, Exército, Marinha e Aeronáutica acorriam aos locais assaltados e os que chegavam primeiro procuravam conduzir as investigações sem dividir informações com os demais órgãos. Logo, para corrigir os erros, constituiu-se a Operação Bandeirantes, que se defrontou desde o início com a burocracia estatal: não podia ser, digamos, um centro de custos, portanto, não tinha verbas para alimentar as operações de busca, apreensão e investigação. O assassinato de um industrial, à plena luz do dia numa praça movimentada de São Paulo, permitiu que soubéssemos que ele fora o responsável pela arrecadação de fundos privados que alimentavam a Operação. O passo seguinte, para atender à regra burocrática, foi a constituição dos Doi-Codi, que não eram órgãos do Exército mas, sim, subordinados ao Ministério do Exército. Da mesma maneira que na Argélia, quando da guerra do Exército francês contra a Frente de Libertação Nacional argelina, esses órgãos repressivos foram, lentamente, ganhando autonomia. Esse fato nos ajuda a compreender o Governo Médici.
Médici governou com o apoio silencioso de boa parte dos empresários − em boa medida devido à política econômica que pôs em prática com o objetivo de sustentar o desenvolvimento e jugular, quanto possível, a inflação. No campo do desenvolvimento é de assinalar os empréstimos do BNDE (ainda não era BNDES) que foram concedidos a algumas empresas consideradas estratégicas. Em uma época em que a correção monetária tornava praticamente impossíveis quaisquer empréstimos destinados à produção, esse setor foi agraciado com uma correção monetária bem abaixo da em geral praticada. No campo da inflação, entrou para os registros da “pequena história” a decisão do Ministro da Fazenda, Delfim Netto, fixando a certa altura a inflação em 13% − e a ela se chegou.
Não apenas os empresários apoiaram Médici. Seu Governo foi o do ”milagre”, que Delfim Netto procurou descaracterizar como tal, dizendo a certa altura que o progresso que se observava era produto do sacrifício dos brasileiros. O prestígio de Médici − grande o bastante para que o Ministro Jarbas Passarinho sugerisse que ele se candidatasse à reeleição − repousava no pleno emprego e no fato, hoje esquecido, de que concedeu a aposentadoria aos empregados rurais e, mesmo sem registro empregatício em carteira, aos com mais de 60 anos. A quantia decretada era pequena, mas o suficiente − como me disse um jangadeiro do Ceará − para que os favorecidos se sentissem desafogados. Para não falar de um elemento que se diria mexer com o inconsciente coletivo, que era a paixão de Médici por futebol e, coisas da Fortuna (pensando em Maquiavel), o ter dado palpite certo sobre o jogo final da Copa em que o Brasil se sagrou tricampeão.
É preciso ter serenidade na avaliação da política externa do Governo Médici. Quando de sua visita a Washington, ouviu de Nixon, no jantar oficial, que para onde se inclinasse o Brasil iria toda a América Latina. Frase que provocou a irritação em muitos círculos militares em Brasília, pois transmitia a impressão de que o Brasil pretendia ser hegemônico na América Latina atrelado à política norte-americana. O “elogio”, feito com segundas intenções, pode-se dizer, levou Médici a decretar a ampliação da extensão das águas territoriais para 200 milhas, provocando a irritação do Departamento de Estado norte-americano e, por coincidência ou não, a posterior revisão do Direito do Mar, consagrando as tradicionais três milhas, mas criando zona marítimas em que o direito de exploração econômica exclusivo era reconhecido aos Estados marítimos. Não poderá, por outro lado, ser esquecida a descortesia, para não dizer mais, do Presidente da Argentina, General Lanusse, quando de sua visita oficial ao Brasil. A praxe diplomática obriga a que cada Presidente comunique ao outro seu discurso antes que seja lido nos jantares oficiais. A troca prévia de discursos se deu entre os Presidentes, mas, para surpresa de Médici, durante a solenidade Lanusse proferiu outro discurso totalmente distinto, em que elogiava o processo de democratização que ele mesmo, Lanusse, conduzia na Argentina, numa evidente alusão ao Brasil. Lanusse não se limitou ao discurso em Brasília. Em São Paulo, insistiria na mesma tônica. A intenção hostil era evidente. Médici silenciou, mas não deixou de manifestar a pessoas de sua confiança sua irritação com aquilo que considerava uma ofensa.
Talvez a decisão mais difícil que Médici foi obrigado a fazer tenha sido a escolha de seu sucessor, já que mais de um General aspirava chegar à Presidência. É importante lembrar que seu Ministro do Exército era o General Orlando Geisel. As informações que chegavam às redações dos jornais eram de dois tipos: umas, evidentemente destinadas a promover a candidatura do General Ernesto Geisel, irmão mais moço de Orlando. Outras, dando conta de que o General Orlando esforçou-se, usando inclusive sua autoridade de Ministro, para impor a candidatura do irmão. Notícias sobre a sucessão foram logo censuradas a pretexto de que a situação era confusa e seria melhor não turvar mais as águas.
Médici, finalmente, optou pelo General Ernesto Geisel. Correu à época que o escolhera depois de receber a informação de que o General Ernesto não mantinha mais ligações com o General Golbery do Couto e Silva. Informação que se revelou falsa, logo depois. No Congresso, Geisel foi eleito sem maiores problemas, obtendo 400 votos contra 76 dados à chapa de oposição (MDB) – composta por Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho –, 20 votos em branco e 6 abstenções.
É curioso notar que, após a candidatura Ernesto Geisel ter sido anunciada, o que chamaríamos de “comitê de propaganda” cuidou de fazer chegar à Imprensa informações sobre a vocação democrática do candidato, lembrando, inclusive, que, na crise da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, como Chefe da Casa Militar do Presidente em exercício, teve uma atitude discreta de respeito à Constituição.
– segue –
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