Concluímos o artigo anterior sem responder à questão: se a Burocracia pôde ser tida como o grupo social com consciência de pertencer ao Estado − e teria, por isso mesmo, uma Idéia do Estado − como se explica que, estando a Burocracia sempre presente na República, a crise do Estado brasileiro aí está?
Busquemos nas Constituições a resposta para a questão.
Convém, antes, procurar saber que tipo de valores e que tipo de organização uma Constituição defende e garante ao Estado. No que se refere aos valores, não será difícil verificar que todas as Constituições brasileiras, de 1824 a 1988, sustentam os direitos e as liberdades individuais consoante o espírito da época. É na organização do Estado que elas diferem − e é nela que deveremos buscar uma primeira resposta para o problema suscitado no artigo anterior.
Poderíamos dizer que a Constituição é o organograma do Estado, rígido ou não, conforme a idéia que os constituintes façam da velocidade com que se dão as mudanças sociais que possam afetar a estrutura mesma do Estado. Dessa perspectiva de análise, quer-nos parecer que, de todas as brasileiras, a Constituição de 1824 foi a que melhor expressou aquilo que uma Constituição deve dizer: “Art. 178 − É só Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos e individuais dos Cidadãos. Tudo o que não é Constitucional pode ser alterado sem as formalidades referidas pelas Legislaturas ordinárias”.
É no exame das “formalidades referidas” para a reforma da Constituição de 1824 que se pode ver até onde trilham mau caminho os que insistem em dizer que o Império foi um período que deve ser esquecido. Pelo contrário, diríamos que deve ser bem lembrado, uma vez que o Estado era definido como a associação dos cidadãos, que a Constituição, que definia limites e atribuições dele, Estado, só poderia ser reformada depois de ouvida a opinião dos cidadãos e que a reforma não poderia ser feita tão apenas segundo a vontade dos constituintes, dados como representantes dos cidadãos. Não falemos, uma vez mais, do pequeno número de eleitores no Império comparado com a população, nem do fato de que apenas quem tivesse determinada renda ou fosse proprietário poderia votar. A República, até 1988, excluiu grande parte da população do corpo eleitoral na medida em que apenas os alfabetizados podiam votar e, ainda assim, foi considerada democrática. Muito menos imaginemos qualquer apelo ao recurso plebiscitário…
O processo de reforma constitucional da Carta Imperial − atento ao que diz o artigo 178 − merece ser citado: “Art. 174. Se passados quatro anos, depois de jurada a Constituição do Brasil, se conhecer que algum dos seus artigos merece reforma, se fará a proposição por escrito, a qual deve ter origem na Câmara dos Deputados, e ser apoiada pela terça parte deles.
“Art. 175. A proposição será lida por três vezes com intervalos de seis dias de uma à outra leitura; e depois da terceira, deliberará a Câmara dos Deputados, se poderá ser admitida á discussão, seguindo-se tudo o mais que é preciso para formação de uma Lei.
“Art. 176. Admitida a discussão, e vencida a necessidade da reforma do Artigo Constitucional, se expedirá Lei, que será sancionada, e promulgada pelo Imperador em forma ordinária; e na qual se ordenará aos Eleitores dos Deputados para a seguinte Legislatura, que nas Procurações lhes confiram especial faculdade para a pretendida alteração, ou reforma (destaques nossos).
“Art. 177. Na seguinte Legislatura, e na primeira Sessão, será a matéria proposta, e discutida, e o que se vencer, prevalecerá para a mudança, ou adição à Lei fundamental; e juntando-se à Constituição será solenemente promulgada”.
Que a procuração aos Deputados para votarem a reforma proposta fique na lembrança. O que interessa é ver como os autores da Carta de 1824 cuidaram da Burocracia.
Não se deram a muito trabalho, definido que já fora o que era “constitucional”: “Art.179 − A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:/ XXIX. Os Empregados Públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticadas no exercício das suas funções e por não fazerem efetivamente responsáveis aos seus subalternos”.
Como se pode interpretar esse inciso XXIX do art. 179? Que a Burocracia não é considerada um grupo social diferenciado, como tal integrando o Governo, mas sim como o conjunto de indivíduos que prestam serviços aos cidadãos e estão sujeitos à Lei se praticarem abusos no exercício da função. Notemos a diferença entre a “Força Militar”, referida no artigos 145 a 148, e os “Empregados Públicos”: os militares são vistos como grupo integrando a estrutura do Estado e a seu serviço; os funcionários (“Empregados Públicos”) servem ao Governo e devem servi-lo respeitando os direitos dos cidadãos. O que indica que a Burocracia é pequena e ainda não teve condições, na interação de seus membros, de constituir-se como grupo social específico. Em suma, a Burocracia não merece tratamento constitucional porque, enquanto grupo, não “diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos e individuais dos Cidadãos”. Ela não é um “poder político” do Estado, ou seja, dos cidadãos que o conformam.
Poderíamos dizer que o tratamento da Burocracia, enquanto parte do Governo e não um “poder político”, indica a afirmação do Político que constrói um Estado contra a reclamação de poder por alguns dos que, até 1824, tinham garantido a possibilidade da vigência da Lei em todo o território e garantido a permanência da Idéia de Estado.
Para que possamos compreender esse processo, será necessário ter em mente que, a partir de 1808, há mudança substancial na relação dos grupos sociais com o Estado. Para a História comum, o Brasil continuou colônia até 1822, quando se deu a independência. Cabe notar, no entanto, que a partir da chegada de Dom João VI ao Rio de Janeiro, a referência dos que vivem no Brasil não é mais o Governo em Lisboa, mas no Rio de Janeiro; que o Chefe do Estado monárquico está em terras brasileiras, o que significa que o Estado português transferiu-se para a colônia − que não pode ser mais considerada tal, pois o Rei governa a partir do Rio de Janeiro. Há mais. O Estado português transforma-se em 1815 − e o Brasil com ele, na medida em que passa a integrar o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O Estado brasileiro, podemos dizer, nasceu em 1815 não por ação da Burocracia, mas do Rei, soberano, Chefe de Estado.
Se assim foi, a Burocracia perdeu sua função não explícita de manter viva a Idéia de Estado a partir de 1815, para não dizer a partir de 1808. Não era mais necessária para tanto: o Rei, aqui presente, encarnava essa Idéia de Estado para todos – e, depois, o Imperador. Além do que caberia notar que, com a partida de Dom João VI, a Burocracia (até então portuguesa) perdeu em número. Com a independência, reiteramos, o Político triunfou sobre o Burocrático e, mais importante, submeteu-o ao Governo.
Como se deu a relação entre o Político e o Burocrático na República? Para não cansar o leitor, fiquemos, por enquanto, em 1891. Diz a primeira Carta republicana: “Art. 82 – Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos. / Parágrafo único – O funcionário público obrigar-se-á por compromisso formal, no ato da posse, ao desempenho dos seus deveres legais.”.
A queda do Império e a proclamação da República não surgiram de alterações de vulto nas relações entre os grupos sociais organizados. Foi, e não nos envergonhemos de dizê-lo, um golpe de força dado por um dos “Poderes Políticos” inscritos na Constituição de 1824: a Força Militar. É natural que, não tendo feito parte de um processo social com conseqüências políticas, a Burocracia ainda fosse considerada Governo e tida como apenas um conjunto de indivíduos a serviço dele.
Cabe ver, em seguida, como as demais Constituições, de 1934 em diante, cuidaram do assunto.
– segue –
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