A título de epígrafe, cabe recordar uma lição da História. Em uma das biografias do General Charles de Gaulle, lê-se que, já reconhecido pela Grã-Bretanha e, depois de 1943, a contragosto, pelos Estados Unidos como Chefe da França Livre, ele se reuniu com um de seus auxiliares diretos e colocou-lhe a grande questão: “− O Estado Francês deve ser reconstruído. Por onde começar?”. A resposta foi: “− Pela educação!”. Ao que o General, tranqüilo, contestou: “− Pelo Exército!”.
Tentemos uma síntese dos diferentes fatores que contribuíram para que a idéia de Estado esteja em coma profundo no Brasil. Não será difícil dizer que a Federação pode ser encontrada nos fundamentos essa crise. Da mesma maneira que o aumento da população, especialmente a urbana, a industrialização e a urbanização descoordenadas, que produziram aquilo que Comte chamava de divisão anômica do trabalho, levando ao desaparecimento da classe média tradicional que forjou a República e defendeu a Ordem desde sempre (com valores superficialmente arraigados que não foram suficientes para proteger a Sociedade das inovações desestruturantes que lhe chegavam do exterior). A conjunção desses fatores permitiu o avanço do Individualismo não apenas nas práticas sociais, econômicas e políticas, mas, sobretudo, na maneira pela qual cada um de nós se posiciona diante do Mundo. A tal ponto que podemos dizer que o Individualismo é a idéia hoje predominante, apresentando-se como a contrafação de uma concepção do mundo.
Há, porém, de observar-se o fenômeno de perspectiva mais ampla. Se temos como certo que o Território é a conditio realiter do Estado, é preciso ver, também, que este, o Estado, só existe enquanto grupo real, enquanto fato sociológico e político, quando responde ao princípio da organização. Essa é a lição de Heller: o Estado é uma unidade coletiva de decisão e ação com legalidade própria, respondendo ao princípio da organização. Em outras palavras, o Estado não pode afirmar-se perante a Sociedade e seus iguais sem uma organização que o transforme, de mera comunidade criada pela ordem jurídica − como o definiu Kelsen − numa associação coativa − como dizia Jelinek − e que o sustente quando os valores que defende − dele próprio e da Nação − estão em perigo. Essa organização é o Exército, vale dizer as Forças Armadas.
A Força Militar do Império, por “essencialmente obediente”, não se confundia com o Estado, mas, por sua história, tinha idéia clara de que era o seu garante, uma vez que lhe incumbia constitucionalmente a defesa da integridade territorial do Império. Foi assim desde 1822, especialmente de 1835 a 1845, quando Caxias com ardis, manobras diríamos diplomáticas e força conseguiu pôr fim à Guerra dos Farrapos. Para não falar nas campanhas do Prata, especialmente na Guerra do Paraguai, quando Marinha e Exército tiveram ocasião de, obedientes, cumprir sua missão constitucional de defender o Império, vale dizer, o Estado brasileiro − que da Força Militar dependia.
Quando estudamos o processo brasileiro nos é necessário atentar para a grande contradição em que incorreram os constituintes ao aprovar a Constituição de 1891.
Foram os “localismos” que fizeram a Federação. A questão é que − e é desta perspectiva que se devem analisar os fatos republicanos −, embora tenham conseguido estabelecer que os contingentes das Forças Armadas seriam fornecidos pelos estados federados (Art. 87 – O Exército federal compor-se-á de contingentes que os Estados e o Distrito Federal são obrigados a fornecer, constituídos de conformidade com a lei anual de fixação de forças), os letrados que redigiram a Constituição de 1891 não puderam fugir à realidade que se lhes impunha e não puderam evitar de reconhecer a presença do Exército na Grande Política. Daí, por certo, a Constituição estabelecer que as Forças Armadas são uma organização nacional permanente. O que já representa uma contradição “existencial”, ou a “dialética”, do que é nacional e o que é federativo no próprio berço da República.
A boa teoria (e igualmente a sadia prática) nos dirá que o Estado é a única organização nacional permanente. Transformando a Força Militar, de “essencialmente obediente” em “organização nacional permanente”, o constituinte de 1891 fez das Forças Armadas mais do que a ossatura do Estado e o suporte da Nação. Confundiu-as, no texto constitucional, com o próprio Estado. Reside aí a contradição apontada. Antagônica, uma vez que a Federação das antigas províncias do Império transformadas, do nada, em estados com seus próprios territórios e constituições, mesmo cada um deles fornecendo elementos para compor os contingentes da Armada e do Exército que seriam nacionais e permanentes, não permitia que essas Forças fossem compostas por cidadãos que se sentissem exatamente brasileiros, mas sentiam-se, sim, paulistas, mineiros, gaúchos, cearenses etc. E fazia que dependessem da organização para moldar o seu espírito nacional. Reside aí também, em nosso entender, um dos elementos explicativos das muitas intervenções militares que marcaram a história republicana – os conflitos entre a Federação e as Forças Armadas. Entre outras razões, foi o desejo de eliminar essa contradição – da maneira mais equivocada possível, pela prática política sem resolvê-la ao nível constitucional – o que levou os Governos de 1964 a 1979 a reduzir progressivamente o papel político das Forças Armadas. Redução essa, convém não esquecer, que se acentuou, para não dizer chegou ao fim, nos meses em que os Ministros militares passaram a responder pela Presidência da República.
Talvez seja possível dizer que o germe da desobediência já se instalara a partir da Questão Militar por influência do Positivismo transplantado para o “ethos” do Brasil iletrado. Mas, se é possível também dizer que o Soldado, antes de sê-lo, era Cidadão, aqueles que levaram à crise nada mais faziam que reclamar fosse efetivado o artigo 1º da Constituição: “O Império do Brasil é a associação política de todos os Cidadãos Brasileiros…”, desprezando o fato de serem parte da Força Militar, essencialmente obediente.
O 15 de Novembro não apenas rompeu a “obediência”, como fez do Exército um “partido” (funcional, claro está) com nova idéia do Estado. O Exército, bem entendido, porque estava ou deveria estar em todo o Território. A revolta da Esquadra, ainda que possa ter tido como pretexto o combate à “ditadura” de Floriano, que assumira a Presidência como Vice de Deodoro esquecendo-se do que exatamente dispunha a Constituição, indica claramente que pelo menos sua derradeira liderança, Saldanha da Gama, tinha outra idéia do que devesse ser o Estado brasileiro, não a mesma do Exército nacional.
O constituinte de 1986, ao redigir a Carta que seria promulgada em 1988, não atentou para a contradição e a manteve – da mesma forma que os Governos civis que sucederam ao Presidente General Figueiredo mantiveram as diretrizes governamentais − redução de orçamento e vigência da lei da expulsória − firmadas por seus antecessores.
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O que pretendemos dizer é que a organização molda a perspectiva que seus membros têm do mundo que os cerca e, a partir dela, esses elementos forjam suas idéias e padrões de conduta. Em outras palavras, pelo fato de as Forças Armadas serem uma organização nacional permanente a igual título que o Estado − ademais hierarquizada −, os cidadãos que as integram por vocação irão pensar o Mundo (e, nele, saberão situar o Brasil) diferentemente dos demais cidadãos que pertencem a organizações sociais que nem são nacionais (no sentido de não abrangerem com sua atividade política o território nacional), nem permanentes − exceto a Família (que hoje se dissolve) e a Igreja (que se fragmenta e assume ostensivamente múltiplas atividades tanto religiosas quanto laicas), ambas tomadas como tipo em que os membros vêem alterada sua cosmovisão à medida que se dá, mais ou menos intensamente, a mudança social. E aqui lembramos, mesmo que entre parênteses, que as classes sociais não podem ser tomadas como organizações típicas porque são integradas por diferentes grupos econômicos e funcionais com extensão e interesses diversos, quando não antagônicos. Tome-se, como exemplo, as diferenças entre a visão que, do processo econômico, têm os grupos proprietários conforme atuem no ecúmeno principal ou no restante do território nacional.
É preciso ter presente que as Forças Armadas, “organização nacional permanente”, são uma organização burocrática que ocupa o território nacional e regem-se pelos princípios da Hierarquia e da Disciplina (para não falar da Honra estamental). Uma organização burocrática distingue-se de outra que chamaremos de política na medida em que as normas para que se ascenda na escala de poder interno são determinados pelas chefias hierárquicas. Exatamente, porém, por ser uma organização burocrática é que podemos dizer que ela permite a existência de dessemelhantes, mas nunca contraditórias nem antagônicas visões do processo político e social que se formam nos diferentes escalões da hierarquia, submetidos todos, porém, à disciplina geral da organização.
Se as chefias militares chamadas de naturais conheceram o País e suas misérias, a necessidade de manter inquebrantada a hierarquia no processo em que ascenderam na carreira fez delas defensoras das ordenações emanadas do Governo e, ainda que a contragosto, dos interesses claramente manifestados nas altas esferas políticas. Os jovens Oficiais, pelo contrário, viam o Brasil e sua função desbravadora − para muitos civilizadora − com outros olhos. É essa diferença vital, entre as chefias − chamamos seu conjunto de Estabelecimento Militar − e os jovens Oficiais, o que permite compreender o Partido Fardado. E explicar aquilo que se entende por Tenentismo − embora seja necessário lembrar que, ao assumir a chefia militar da Revolução de 1930, Góes Monteiro era Tenente-Coronel, ainda assim desejoso de transformar o Brasil, como disse ao Governador Getúlio Vargas que o convidara para aquela função.
É preciso que consideremos também, para uma mais perfeita compreensão do processo político brasileiro, que, por serem parte de uma organização nacional e permanente, os integrantes do Partido Fardado transformaram a “função” militar em “missão” do Estado, portanto “sua” missão. Imbuídos dessa nova visão de seu papel na Sociedade, ergueram-se contra o Governo que impedia, pelos encontros de interesses privados (diríamos acertos algébricos em que o mais elimina o menos), que o Estado interviesse para resolver situações que aberravam do bom senso e, sobretudo, situações que negavam a idéia de Sociedade que vinha da idéia de Ordem própria de sua organização. Idéia de Ordem, por contraditória que pareça a afirmação, que decorria da consciência de que todos são iguais, uns mais habilitados que outros, mas a ascensão na hierarquia estaria aberta a todos que demonstrassem valor e “virtù” para mandar depois de terem aprendido a obedecer. É essa idéia, a de uma Ordem em que a igualdade se faz hierarquizada, que os integrantes do Partido Fardado pretenderam, sempre, transformar em realidade no Brasil.
Há outro elemento que não pode deixar de ser considerado: ainda que “missionários”, os membros do Partido Fardado formaram-se numa escola em que hierarquia e disciplina são valores aglutinantes da corporação. É por isso que, exceto na gesta de Haroldo Veloso em Jacareacanga, o Partido Fardado sempre necessitou de uma chefia de posto mais elevado. Em 1924, a de um General; a Coluna e 1930 são ações revolucionárias que escapam ao quadro das “ações missionárias” do Partido Fardado; em 1937 e 1945, são as chefias que decidem; 1964 tem, no dia 31 de Março, em Minas Gerais, a chefia de um General – e, no que sucedeu, todos obedeceram ao Ministro, General de Exército Costa e Silva. Os Atos Institucionais, esses foram produto da ação do Partido Fardado.
Se a carreira estava aberta aos talentos, como se cunhou durante as guerras napoleônicas, o mundo e a economia civis nunca ofereceram as mesmas garantias de sobrevivência digna aos que, jovens ou de meia idade, deixavam as fileiras. Esse elemento tem de ser levado em conta quando se examinam os efeitos do decreto-lei (norma vigente até hoje) da Junta Militar que instituiu a compulsória, dando aos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica o poder de colocar na Reserva, sem observância de critérios objetivos, Oficiais que, promovidos, poderiam causar-lhes problemas. A esse golpe nos jovens e até mesmo nos Coronéis, há de somar-se a lei de promoções de Castelo Branco, ainda vigente, que eliminou a possibilidade de surgir uma chefia política tal como foi comum na República Risonha e Franca de 1946.
A combinação de todos os fatores sociais acima apontados com a decisão dos Presidentes militares de reduzir a participação das Forças Armadas nos assuntos de Estado – criando assim as condições para o desaparecimento do Partido Fardado – levou à crise que temos hoje pela frente. Na verdade, as Forças Armadas não apenas deixaram de ter importância na condução dos negócios do Estado, portanto na formulação de políticas nacionais. Progressivamente, pela ação consciente dos Governos que vieram depois da Presidência do General Figueiredo, perderam as condições estruturais e constitucionais que permitiam a seus membros ter a clara noção de que o exercício pleno de suas funções fazia deles autênticos missionários. Passaram a ser apenas “profissionais” das Armas. Mais ainda: o desaparecimento do Partido Fardado fez que a Política deixasse de ser o campo em que se digladiavam concepções do mundo e do Estado. Em outras palavras, não há hoje, no Brasil, quem seja capaz de identificar, no Outro, o seu Inimigo.
– segue –
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