UMA VISÃO HETERODOXA DO PROCESSO – 30 (FINAL)

 

 

 

 

     A referência ao Inimigo como fator a ser considerado na análise do processo brasileiro, feita em artigos anteriores, poderá parecer proposição gratuita, inspirada em alguma teoria sociológica sobre o que seja a Política. Não é, infelizmente. Na verdade, trata-se do reconhecimento de fato observável na vida política brasileira desde a Revolução de 1930.

 

     A presença de anarquistas, depois de comunistas e, sobretudo, de estrangeiros sempre fora objeto, antes de 1930, de ações legislativas, quando não policiais. Eles não podem, de nossa perspectiva, ser considerados como “O Inimigo”. Mesmo levando-se em conta a agitação operária nos centros em que a indústria começava a dar passos mais firmes, o número dos agitadores na população global, ainda que consideremos apenas a urbana, não era de modo a colocar em xeque as estruturas econômicas e espirituais (a visão do mundo) do sistema social e político; ademais, havia concordância quase geral em torno das providências que contra eles se tomavam no Legislativo e pela ação da Polícia.

 

     A idéia do Inimigo começa a germinar e a fazer sentido analítico logo após o triunfo da Revolução de 1930 e a entrada dos vitoriosos em São Paulo, nomeando João Alberto como Interventor e Miguel Costa como Chefe de Polícia sem que fossem ouvidos os dirigentes do Partido Democrático que haviam apoiado a Revolução. Ela se consolida a partir do golpe de Estado de 1937. Serão diferentes interpretações de como organizar-se o Estado futuro que inspirarão, do lado dos vitoriosos, Vargas e Góes, e, de outro, os Democratas; por serem opostas, marcarão todo o período em que Vargas em pessoa, ou sua imagem, esteve presente na história do Brasil. É em 1930, com a derrota − pois disso se tratou − dos democratas paulistas e com a revolução de 1932, mas sobretudo depois de 10 de Novembro de 1937, que a política brasileira passou a ser um conjunto de ações inspiradas pela idéia de Amigo / Inimigo.

 

     O que dissemos poderia ser tomado como mais uma teoria. É importante, no entanto, ter presente que, até a vitória de Vargas havia adversários, às vezes jurados de morte, mas não se conhecia o Inimigo, pois nenhum dos lados numa disputa de poder local, regional ou federal pretendia subverter os fundamentos da Ordem. A Campanha Civilista de 1910 (Rui Barbosa contra o Marechal Hermes da Fonseca), por exemplo, não teve esse caráter de oposição frontal entre diferentes idéias de como construir o Estado e organizar a Sociedade. Sem dúvida, tendo sido um dos que se opusera ao “Marechal de ferro”, Rui temia que o “militarismo” pudesse levar à repetição do desprezo que Floriano, em circunstâncias dramáticas, havia manifestado pelas instituições liberais republicanas recém-implantadas. O Marechal Hermes, porém, não simbolizava o “militarismo”, o Inimigo! A candidatura Hermes era vista por Rui como ameaça, sim, mas não mais que isso. E era tida pelos que o apoiavam como a possibilidade de continuação de um sistema político em que não teriam oportunidade de ter voz. Ameaça que as eleições poderiam conjurar.

 

     Em 1930, a situação é diversa porque os atores são outros. Da revolta corporativa de 1922 até a revolução de 1924, os Tenentes tiveram tempo de amadurecer sua oposição a uma situação que julgavam iníqua: daí sua proposição para que se estabelecesse o voto censitário, como no Império. A revolução de 1924 se fez contra o “Sistema” que se mantinha pelo voto a “bico de pena”, mas não é contra o predomínio de São Paulo e Minas Gerais na Federação.

 

     Os Tenentes derrotados em São Paulo em 1924 puderam ter do Brasil uma visão diferente à medida que cruzavam o Interior na gesta da Coluna. Com toda a certeza, sua ação junto a Getúlio Vargas foi um dos fatores que levaram o candidato derrotado nas eleições de 1930 a não adotar a posição conciliadora de Borges de Medeiros, que aceitara a resultado das urnas pois reconhecia que os dois lados tinham praticado fraudes na eleição. Essa influência dos Tenentes, porém, não explica o porquê do movimento vitorioso não se ter preocupado com combater as velhas estruturas sociais do Nordeste − apesar de Juarez Távora vir a ser conhecido como o “Vice-rei do Norte” − mas, sim, ter-se esmerado na escolha de um nordestino para ser o Interventor em São Paulo e um revolucionário da Coluna, ademais crítico das práticas vigentes na indústria nascente, para instalar-se na Chefia de Polícia.

 

     Para os Tenentes, o democratas não eram adversários da revolução, que começara a ser organizada antes das eleições. Há escritos de Juarez insistindo em que a adesão do Partido Democrata seria essencial para o triunfo do movimento, pois traria parte de São Paulo junto com eles. Os democratas assim pensavam, igualmente − e aderiram aos que apoiavam Vargas na medida em que o programa da oposição a Júlio Prestes inscrevia a criação da Justiça Eleitoral e a consagração do voto secreto. Góes, porém, não era um “Tenente”. Aceitara ser o Chefe militar do movimento para realizar profundas transformações no Brasil, e Vargas vinha de um universo positivista-castilhista em que os operários (não a classe operária) deveriam ser incorporados à Pólis. Já os paulistas apoiaram a revolução porque prometia o voto secreto e a criação da Justiça Eleitoral, único modo de as oposições poderem triunfar, um dia, em eleições livres. Mas também, convém lembrar, para que se realizasse no Brasil a democracia liberal de seus sonhos, vale dizer, aquela em que as eleições eram livres e as oposições respeitadas.

 

     Eram, esses, universos mentais que não poderiam conciliar-se no processo que se iniciou a 3 de Outubro e que se concluiu no dia 24, depois da “maior batalha campal da América do Sul − a que não houve” (Itararé) e da deposição de Washington Luís pelos Generais no Rio de Janeiro, na suposição de que poderiam assumir o Governo. A cena dos “voluntários” gaúchos, lenço vermelho no pescoço, amarrando seus cavalos no Obelisco da Capital, era significativa do que estava por vir para os que acreditavam, como Rui, nas idéias liberais vindas da Inglaterra do século XIX.

 

     A idéia que Góes Monteiro, já General, fazia da política paulista em 1931, quando Comandante da II Região Militar (antiga denominação do que é hoje o Comando Militar do Sudeste), permite compreender contra quê o movimento se fizera: “A camorra de cima e a camorra de baixo”. Da mesma maneira que o empenho do Governo Provisório em inscrever na Constituição de 1934 a representação classista para compensar o poder de São Paulo é outro elemento definidor da idéia de como se pretendia reconstruir o Estado. Essa foi uma das maneiras pelas quais, desde a primeira metade da década de 1930, manifestou-se a crise entre São Paulo e a liderança civil e militar da Revolução. Outra foi a criação, pelo Governo, em 1931, do Conselho Nacional do Café, em 1933 substituído pelo Departamento Nacional de Café (DNC), que controlou o setor até 1946, quando foi extinto, e dos Instituto controladores da produção − como o Instituto do Álcool e do Açúcar (1933), compensando política e muitas vezes economicamente a perda de poder das oligarquias nordestinas. Observe-se que os Institutos tiveram vida longa na República de 1946, mas o DNC não sobreviveu à volta da influência paulista e mineira na política geral.

 

     A interpretação corrente da revolução de 1930 como tendo sido determinada, entre outras razões, pela reação dos Estados afastados do controle do Poder de Estado pela união de São Paulo e Minas Gerais é correta. É correta, mas é incompleta. A revolução, sem dúvida, fora feita contra o predomínio político desses dois estados. É preciso atentar, contudo, para o fato de que um dos primeiros atos do Governo provisório foi decretar a moratória para as dívidas no setor do café, que levara muitos se não todos os cafeicultores endividados a colocarem-se contra Washington Luis que se negara a resolver sua situação financeira.

 

     Em 1930, são visões do mundo que se confrontam. O universo do paulista, dirigente do Partido Republicano Paulista ou do Partido Democrático, é diferente daquele construído nos demais Estados, especialmente no Rio Grande do Sul.

 

     O ouro que descobriu no século XVIII e a imensidão das Gerais que abriu à cobiça da Coroa permitiram ao paulista construir uma idéia do Espaço em que ele, desbravador, é o senhor. Não é a fronteira de uma Capitania qualquer que o separará de seu chão original nem que o impedirá de construir o sonho de um Estado seu. Lembrar-se-á sempre de que foram as bandeiras paulistas que descobriram as minas de ouro e que foi Fernão Dias quem abriu caminhos, fazendo-se pelo sertão ao final de março, como cantou o poeta. Além do que ele se considerava a “locomotiva do Brasil”, puxando o atraso dos outros Estados.

 

     O gaúcho é todo o contrário dele. Como tipo, é único na história brasileira. Na defesa do chão ou na cavalgada para defender seu status ou seguir um caudilho a quem admira ou deve obrigações, todos se juntam, dependentes e senhores, na luta em que na lança e na espada se joga a vida. No descanso do chimarrão, as diferenças sociais se desfazem e é essa parada, necessária no turbilhão da cavalgada armada, que reforça a solidariedade sem eliminar as relações de dependência.

 

     Centralizador ou autonomista, quando se integra no Espaço-Estatal, o gaúcho tem do Brasil a visão do território imenso a conquistar. E o castilhismo envolverá essa visão numa veste doutrinária contrária àquela com que a República pretendia preservar velhos padrões de dominação. Já o paulista, que se considera “paulista” e, por isso, superior, é soberbo. E sua soberba pode ir ao extremo de reclamar a autonomia ou a independência, lembrando Amador Bueno, o que não quis ser rei.

 

     Literatura à parte, são duas visões do mundo inspirando políticas de poder distintas que se confrontam. O confronto, porém, só se tornará evidente em 1932. Ainda que os dirigentes do movimento armado tenham sempre negado tal intenção − acalentada por alguns setores −, Vargas usou o argumento de que a revolução paulista era separatista e, assim, foi-lhe mais fácil conseguir o apoio dos Governos dos demais Estados.

 

     Há, na história dos antecedentes do golpe de 10 de Novembro de 1937, um episódio que merece ser elucidado: a nomeação de Armando de Sales Oliveira como Interventor Federal em São Paulo, em 1933. Nomeação tão mais estranha quando Dutra, Ministro da Guerra, e Góes, Chefe do Estado Maior do Exército, a ela se opuseram, lembrando a Vargas que Armando havia estado à frente da revolução de 1932 e era, portanto, um inimigo. Apesar da oposição militar, Vargas manteve sua escolha, dizendo aos dois que escolhera Armando porque ele tinha uma boa idéia do Estado. Só essa percepção é o que poderá explicar a entrega do Governo do estado economicamente mais ativo da Federação (em coma induzido desde 1930, pode ser dito) a quem se levantara em armas contra a Ditadura − como o Governo Provisório era chamado em São Paulo. Assim como apenas a quase-certeza que Vargas tem de que as idéias de Armando de Sales Oliveira sobre o Estado são próximas das suas explicaria como recebeu com gentilezas o candidato quando ele lhe foi participar que renunciava ao Governo paulista para candidatar-se às eleições de 1938. Gentilezas de que Armando não conseguiu entender o porquê, como escreveu depois, já no exílio, a Góes.

 

     Ousaria dizer que o golpe de Estado de 1937 separou definitivamente, de Vargas, os democratas que, por delegação do ditador, governaram São Paulo de 1933 a 1936. Desde então, Getúlio Vargas e tudo o que este significava passaram a ser o Inimigo. Ele, Vargas, não o Exército, a cujo compromisso com a democracia Armando apelou às vésperas do golpe de 10 de Novembro! Vargas era o Inimigo da idéia de Estado que fora acalentada em São Paulo desde 1924, quando se deu a cisão do Partido Republicano, dela emergindo o Partido Democrático − idéia liberal a meias, já que as grandes políticas, inclusive a da solução das desigualdades regionais, deveriam ser propostas por um Partido que as levaria ao Governo, como Armando deixou claro na campanha presidencial. É de notar que a idéia de um Partido, separado do Governo, mas que a ele sugere as grandes políticas, pouco tem a ver com o liberalismo que, nos anos 1930, está na defensiva na Europa… Mas é idéia que Armando fez sua desde 1936, referindo-se ao exemplo europeu.

 

     É importante dar atenção a que, a partir da convocação da Assembléia Constituinte e, especialmente, depois do golpe de 29 de Outubro de 1945, o tom da campanha − Democracia versus Ditadura Vargas e Partido Comunista − não será dado pelos democratas paulistas que se uniram na UDN. Como dissemos em artigo anterior, Lacerda, egresso do movimento comunista, será o porta-voz da oposição a Vargas como Inimigo. Vargas e o comunismo – considerado Inimigo desde 1935, pela violência dos acontecimentos no Nordeste e no Rio de Janeiro – foram juntados (essa a expressão correta) em 1945 e passaram a ser vistos como um perigo, já não para a democracia liberal dos sonhos paulistas, mas para a Ordem que seria consagrada pela Constituição de 1946. Embora a idéia de que o comunismo fosse o Inimigo da Ordem deva ser vista com cautela, em 1945. O Inimigo será o comunismo − não o Partido Comunista de Luis Carlos Prestes, cujo apoio ao Brigadeiro Eduardo Gomes, em 1945, é desejado.

 

     A UDN não era, sem Lacerda, um Partido capaz de fazer de Vargas o Inimigo. Em São Paulo, não conseguiu derrotar Ademar de Barros, só o vencendo com Jânio Quadros, em 1954, e Carvalho Pinto, em 1958. Em 1962, nos pródomos do movimento de 1964, não conseguiu eleger seu candidato, que fizera campanha contra os Ministros militares de 1961 − os “gorilas”! Se a UDN paulista não teve expressão política de peso deve-se, também, ao fato de não ter tido apoio significativo da Indústria ou das Finanças, que se davam muito bem com o Sistema que fora montado por Vargas… Lacerda foi quem permitiu que a UDN nacional, superando as divergências entre as oligarquias que a integravam no Norte e Nordeste, sobretudo, tivesse alguma voz na política. Mais tarde, na luta por manter um lugar ao sol, abandonado por todos os que haviam formado na luta contra Jango e o perigo comunista, Lacerda encontrou a maneira de estar presente na política aliando-se aos velhos adversários, Juscelino e Goulart, na Frente Ampla contra os Governos militares. Articulação que juntava todos os inimigos que vinham de 1950 e 1964: o porta-voz do udenismo antivarguista, Juscelino e Goulart, herdeiros diretos ou não de Vargas.

 

     Com a Junta Militar no exercício das funções da Presidência da República, morre o Partido Fardado. E, a partir do momento em que − sem negar as políticas fundamentais de Vargas (sindicalismo de Estado, Petrobrás e o Estado como provedor de Capitais) –, os Governos militares pós-Costa e Silva neutralizam o perigo comunista e, por inspiração de Golbery, também Brizola, que reclamava ser o herdeiro de Getúlio, faz-se Política acreditando-se na idéia de que não mais há um Inimigo.

 

     Ledo engano. A partir das mudanças na economia internacional – alta dos juros e choque do petróleo – e da quebra da expectativa do prosseguimento do ritmo de desenvolvimento interno, as esquerdas, apoiadas por todos os ressentidos com as políticas de ajuste econômico e fiscal dos Governos militares, construíram seu Inimigo: as Forças Armadas. E puderam construí-lo, desaparecido o Partido Fardado, porque o Estado não havia ocupado o espaço que deveria ocupar. Hoje, uma campanha de exaltação, em especial do Exército, faz-se com os aplausos de amplos setores da Sociedade que confiam nas Forças Armadas para garantir a ordem pública e até aceitam que elas devam ser mais bem aparelhada tecnologicamente – mas todos se esquecem de que as Armas nobres, todas elas, estão sendo reduzidas à condição de Milícia para apenas garantir o Governo e suas motivações na política interna e na política externa.

 

     Desaparecendo os que a defendiam, desapareceu a presença ativa das Forças Armadas nas decisões cruciais do Estado. Os que integram o Estabelecimento Militar não se aperceberam de que, com a morte do Partido Fardado, deixou de existir o único “Partido” capaz de realizar a idéia de Estado que conciliava a austeridade, a grandeza e o progresso. Não que esse “Partido” devesse ser ou fosse o Estado, mas porque dele era parte vital.

 

     As lições de Góes Monteiro, o intelectual do Partido Fardado, também puderam ser esquecidas. Em 1946, ele dizia que o Brasil “(…) letárgico e ignoto não despertou à madrugada; preguiçoso chegou ao meio-dia e se assim se detiver até o entardecer do século, não poderá sustentar-se de pé”. O que talvez traduza e resuma a crise do Estado brasileiro neste século atual.

 

 

 

 

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