UMA VISÃO HETERODOXA DO PROCESSO – 4

 

 

 

 

     Terminei o artigo “Uma Visão Heterodoxa do Processo -3- ” dizendo que o Sistema tornou-se imbatível com a morte do Partido Fardado. Tentemos entender o porquê dessa afirmação, ainda que sejamos obrigados a voltar à história.

 

     Uma das explicações que se deram, antes de 1964, para as intervenções militares no Estado foi a de que as Forças Armadas agiam na República como se fossem o Poder Moderador do Império. Era uma tentativa de compreensão, que no fundo não levava na devida conta o que fora o Poder Moderador. A única semelhança − se é que alguma houve desde 1922 − entre o Poder Moderador e as Forças Armadas republicanas era a de que, como o primeiro, elas seriam eram um “poder neutro” do Estado. Não eram.

 

     As intervenções que se sucederam à de 1922 tiveram, cada uma, motivações diferentes. Se os “18 do Forte” jogaram a vida por motivos referentes ao Exército, corporativos, portanto, como transparece claramente das memórias do General Juarez Távora e no depoimento do General Góes Monteiro − um, participe ativo da revolta, outro igualmente ativo na repressão −, as demais responderam a motivações diferentes. Deixemos de lado 1924, que foi a continuação do tenentismo, ainda que sob o comando de um General, e 1937, golpe de Estado planejado pelo Presidente e do qual o Exército (pelas palavras de seu Ministro, o General Eurico Gaspar Dutra, procurou eximir-se, embora o apoiasse). É de notar que as que se seguiram foram condicionadas por fatores sociais e políticos diferentes. Basta ver sua sucessão: 1945 (deposição do ditador), 1954 (suicídio do Presidente da República); 1955 (dois golpes de Estado que se sucederam no intervalo de 10 dias, a pretexto de dar posse ao Presidente eleito); 1961 (intervenção malograda dos Ministros militares para impedir a posse do Vice-Presidente na Presidência) e 1964 (deposição do Presidente da República, inaugurando um sistema de governo que sempre foi presidido por um General, durante 20 anos). Em cada uma delas, uma ideia de Brasil, diferente da que era impressa pelos Governos, subjazia. O fato de terem sido motivadas por fatores sociais e políticos diferentes não afasta a possibilidade de que sempre tenham sido desejadas se não apoiadas por toda a sociedade, pelo menos por grupos sociais que tinham influência sobre a opinião pública e, mais que isso, sobre aquilo que se chama a classe política e que, para facilidade de argumentação, chamaremos de Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal. Busquemos esse elemento comum, ainda que tenhamos que voltar, agora sim, ao Império.

 

     Oliveira Vianna talvez tenha sido o primeiro a procurar caracterizar a crise militar que acabou sacudindo o Segundo Reinado. Deve ser lembrada sua referência aos “Totens” e à “mole militar”. Os totens foram, para ele, Caxias e Osório, um atraindo as elites que se representavam no Partido Conservador, o outro, as que formavam no Partido Liberal. A “mole militar” era a tropa.

 

     No 15 de novembro de 1889, a rigor, não se pode dizer que a mole militar foi levada a depor o Gabinete levada por um totem que, como tal, tenha assumido à claras a direção política e intelectual do processo. Há referências explícitas ao fato de Deodoro, recolhido ao leito, ter sido levado a concordar com a queda do Império por obra de Benjamin Constant, que o instou a agir. pois a missão do Exército era manter a lei e a ordem que o Presidente do Conselho vinha desrespeitando, inclusive humilhando o Exército. Não será demais dizer que o papel decisivo na prisão de Ouro Preto, Presidente do Conselho. foi desempenhado por Floriano Peixoto, seu Ajudante-de-Campo que anuiu explicitamente à voz de prisão. Sem ele, dificilmente teria sido possível a mudança pacífica do regime − o que permite dizer que Floriano foi o único totem no processo que levou à queda do Império. Tanto o foi, parece-nos, que sua ascensão à Presidência deu-se com o apoio da mole militar − os Generais que tomaram posição contrária foram presos sem que houvesse reação – que, sob seu comando, resistiu à Revolta da Armada e à Revolução Federalista iniciada no Rio Grande do Sul e que quase chegou a São Paulo. Com certa liberdade, podemos dizer que houve outro totem, Benjamin Constant, que preparou a mente dos jovens oficiais para a implantação da República.

 

     O importante a reter da análise de Oliveira Vianna é a ligação que estabelece entre o totem e o mundo político. Se não levarmos em conta os laços sociais e mentais (da psicologia dos grupos sociais dirigentes) não compreenderemos o processo. Poder-se-á argumentar que o dramático episódio de 15 de novembro de 1889 não se enquadra perfeitamente nessa proposição teórica, na medida em que Deodoro não era figura politicamente notável que lhe permitisse ser o totem da crise militar que levou ao 15 de novembro. É preciso ver que se Deodoro não era Caxias, tinha uma vida militar que lhe granjeara prestígio que, por sua vez, veio somar-se à autoridade das dragonas de Marechal. Floriano havia se distinguido na guerra do Paraguai, cuja lembrança, convém notar, ainda estava viva na memória de muitos, se não de quase todos. Afinal, que eram 20 anos, se tanto, na vida de uma sociedade rural em que o tempo tinha, como diria alguém, uma duração lenta, muito lenta, diferente daquela que tem hoje? Floriano seguramente foi um dos que incutiu na mente da oficialidade que a situação brasileira era de tal modo desesperadora, que apenas a espada poderia fazer o Brasil retomar seu rumo. A referência à “espada” vem clara em carta que escreveu antes do 15 de novembro.

 

     Ademais, é preciso atentar para um fato nem sempre lembrado, confirmando a análise de Oliveira Vianna: a propaganda antimonárquica disfarçada sob o mote do “Golpe do Terceiro Reinado”. Os republicanos, do recém-formado Partido Republicano (que em 1870 se recusara a tomar posição sobre o problema da escravidão), esses integravam o sistema imperial que lhes permitia fazer sua propaganda e, defensores da Ordem − não da mudança revolucionária do regime, note-se − não tinham como aderir à pregação contra a legítima sucessão de D. Pedro II por sua filha Isabel, casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu. Se os republicanos do PR não faziam propaganda contra a sucessão monárquica por ser ela legítima, houve quem, diariamente por assim dizer, procurou demonstrar que havia corrupção no Governo (os famosos “loios”, os empreiteiros da época, curiosamente todos da família Loio); que os defensores da Monarquia haviam organizado a Guarda Negra (a pretexto de louvar a Princesa) para combater e possivelmente eliminar os que eram contra o Governo, e também, subliminarmente, fazer a propaganda contrária ao Terceiro Reinado. Esse alguém foi Rui Barbosa, o jornalista, cujos editoriais são das coisas mais virulentas de que tenho notícia e devem ter contribuído, por um lado, mais que a pregação de Benjamin Constant na Escola Militar, para trabalhar a mente de militares e civis, e por outro, para neutralizar possíveis reações de defensores da Monarquia.

 

     Feitas essas ressalvas (ou seriam apenas observações para completar o quadro?), a análise de Oliveira Vianna não pode ser desprezada quando se analisam as intervenções militares na República. Nelas, como se sabe, o Exército foi sempre o elemento mais presente. A Marinha secundou-o em muitas intervenções, e a FAB, por sua criação recente, teve papel menor apesar de seu poder de fogo não poder ser desprezado. Fixemo-nos, portanto, no Exército, sem desconhecer que todos os Oficiais das três Forças viveram, como vivem hoje, num meio social determinado e dele sofrem as influências, especialmente as que dizem respeito à organização do Estado e da sociedade.

 

     Ao falar de influências não se deve perder de vista que estamos cuidando do mundo ideológico em que vivia e vive a sociedade brasileira. Estamos falando, pois, de idéias dominantes em momentos históricos determinados. Esse processo de “influência” só será devidamente compreendido se considerarmos que as idéias que marcaram este ou aquele período não brotaram no Brasil. Já na Colônia − e os inconfidentes mineiros são disso a prova − as idéias de liberdade e de organização do Estado a partir de um contrato social vieram da Europa, depois dos Estados Unidos, cuja revolução da independência e a forma em que se organizou o Estado eram a inspiração dos que pretendiam a eliminação do vínculo político com Portugal e, depois, no Império, a vigência de um regime político semelhante ao norte-americano ou ao inglês − especialmente este, os Comuns governando o país e o Governo sendo a expressão de seus interesses e também, convém não esquecer, daqueles dos lordes reunidos em Câmara. As idéias que nutriam o ideal de independência e de um Parlamento capaz se não de formar, ao menos de orientar o Governo não tinham relação direta alguma com a organização social, especialmente as formas em que se manifestava a hierarquia entre os grupos sociais e os indivíduos.

 

     Não é, como querem alguns, que essas idéias estivessem fora de lugar. Tinham seu lugar, sim − que eram primeiramente as elites agrárias e comerciais, depois financeiras e industriais (as financeiras precedendo, sempre, as industriais). No Segundo Reinado, os que representavam essas elites reclamavam para o Parlamento funções semelhantes às exercidas no Reino Unido, sabiam que interesses estavam defendendo e, mais do que isso, sabiam como se estruturava a sociedade brasileira. O liberalismo, mesmo o europeu, nunca falou a linguagem do Povo. Foi construção teórica, alguns diriam ideológica, para defender a Família, a Propriedade e a Ordem − e por Ordem deve-se entender uma ordenação hierarquizada dos diferentes grupos sociais, hierarquia fundada antes de tudo na propriedade. As idéias de que o Povo deve participar do contrato social foram sementes lançadas depois da Revolução Francesa. Elas também chegaram ao Brasil. Se aceitássemos a formulação “idéias fora o lugar”, igualmente o socialismo e o marxismo da Terceira Internacional foram idéias fora do lugar no Brasil, pois o Povo não tinha consciência de sê-lo e a classe operária ainda estava em seu berço infantil.

 

     Na Primeira República, é preciso não esquecer que o liberalismo, como dizia Armando de Salles Oliveira, floresceu no jardim das casas coloniais. Não foram, porém, apenas as idéias liberais que chegaram ao Brasil depois da República: também as autoritárias, cujos cultores tinham concepções da organização do Estado e da sociedade diferentes das concepções dos cultores do liberalismo euro-brasileiro. Antes do ideário do Fascismo italiano chegar ao Brasil, conturbando o quadro político, o autoritarismo presente no pensamento conservador francês pós-Revolução. especialmente o de inspiração católica, impregnou boa parte das elites dirigentes, que incorporaram sua concepção da organização social e política do Estado − não qualquer um, mas um Estado capaz de pairar acima dos interesses e com poder e autoridade suficientes para organizar a sociedade de forma a que a Ordem não fosse abalada. Ao fascismo italiano, que aqui chegou depois da ascensão de Mussolini ao poder, veio somar-se a imagem que se passou a fazer do Portugal salazarista como exemplo de um Estado capaz de manter a Ordem. É nessa corrente de pensamento, que se associa à Sociologia francesa, que Oliveira Vianna vai buscar inspiração para afirmar que a sociedade brasileira era desorganizada, cabendo ao Estado organizá-la.

 

     Essa combinação (diríamos química) das idéias do autoritarismo euro-brasileiro com o liberalismo que vicejava nas casas coloniais vai marcar todo o fim da República Velha, já pressentido na cisão do Partido Republicano Paulista, em 1924, da qual resultou o Partido Democrático. Mas é igualmente ela que vai marcar todo o período que se inicia em 1930 ou pouco depois, quando, então, ressurge o Totem na pessoa de Pedro Aurélio de Góes Monteiro. Apenas essa combinação permite explicar porque até o fim dos anos 1940, em solenidades oficiais, os oradores se dirigiam à audiência com a frase: “Excelentíssimas autoridades civis, militares e eclesiásticas”. A saudação, mais que demonstração de respeito à Autoridade, significava que a sociedade, ou pelo menos os grupos dirigentes dela (econômicos, social e politicamente), mas também os intelectuais que deles participavam em qualquer posição, tinham a estranha idéia de que o poder do Estado era compartilhado entre o Governo, as Forças Armadas e a Igreja Católica.

 

     O Totem, convém ressaltar, era tal, fosse pela autoridade que derivava da posição que ocupava na hierarquia militar, fosse pelo prestígio que tinha junto aos grupos sociais dominantes e também junto àqueles que, embora socialmente influentes, eram excluídos do Poder. Sofria, assim a influência de quantos viam no Exército a última instância a que recorrer para garantir a Ordem ou para chegar ao Poder, ainda que alterando a forma, insisto na forma, da organização política. O que significa que a partir do momento histórico em que os caminhos se fecharam para os grupos sociais excluídos do Poder, vale dizer do Governo − quero dizer especificamente, no Estado Novo − os excluídos do Poder vão buscar no Exército os seus totens.

 

     -segue –

 

 

 

 

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx