A fotografia poderia ter sido tirada durante a Segunda guerra Mundial. Na sua simplicidade e frieza sádica, mostra-nos dezenas de pessoas com as mãos amarradas, amontoadas em uma vala, enquanto um grupo armado se prepara para executá-las. É uma fotografia atual. Do Iraque destes nossos dias. É a guerra de guerrilha moderna.
A diferença entre esta foto e as que poderiam ter sido tiradas ─ quando não o foram ─ na Polônia e na Ucrânia reside num detalhe: não todos, mas alguns dos assassinos estão mascarados, como se não desejassem que os que vão morrer – seus vizinhos, amigos e talvez até mesmo parentes – os reconheçam.
A guerra – conforme a paz de Vestfália proclamou no século XVII – é uma ação entre Estados. O que indicou que grupos armados que praticam a violência não fazem a Guerra, mas sim cometem atos criminosos punidos de diferentes maneiras pelas leis dos diferentes Estados. A violência desmedida que marcou a Guerra dos 30 anos forçou a “consciência dos Estados” (?) a cuidar, em convenções, da proibição da violência contra civis e da condição dos prisioneiros de guerra, que não poderiam ser tratados como bandidos. Convenções essas cujo desrespeito levou à definição de “crimes de guerra” e à condenação dos “criminosos de guerra”, combatentes que, uma vez vencidos, foram punidos pelos Estados vencedores.
O Estado, por definição, não se rende. Quando capitula pela força das armas, submete-se às leis do vencedor. Deixa de existir como Estado até que se recomponha também pela força das armas em outra guerra ou até que o vencedor lhe conceda o benefício da existência subordinada e o convença a aceitá-la. Foi assim ao longo da História. Quando o soldado, a companhia ou a divisão se rende, é porque o instinto de sobrevivência do indivíduo falou mais alto que a consciência de súdito/cidadão e, para esse indivíduo, o Estado deixou de existir naquele preciso momento em que ele teve de escolher entre honra e liberdade e a sua vida. Mas quantos soldados, na Segunda Guerra, renderam-se e foram fuzilados pelos vencedores porque eram um peso na ofensiva? Hitler e também Churchill em momento de desespero proibiram a rendição e ordenaram a luta até o último homem. Porque o Estado não se rende. Stalin deu vida a esse raciocínio perverso: os soldados russos que foram aprisionados pelos alemães e, depois, libertados pelos ingleses e norte-americanos foram enviados ao Gulag para purgar a deserção do Estado soviético.
A guerrilha não é uma guerra, porque não se faz entre Estados. A guerrilha é o combate de um grupo, maior ou menor, que se ergue contra o Estado estabelecido porque aspira a constituir-se como poder de Estado. Não tenho memória de que guerrilheiros ou terroristas capturados tenham sido alguma vez classificados como ”prisioneiros de guerra” pelo Direito Internacional. Se o foram, isso terá ocorrido para dar a satisfação à consciência liberal dos que desejam um mundo sem guerras e sem violência ─ na mentira de um mundo sem poder.
Malraux, num estudo magnífico sobre Saint Just, definiu o Terror francês como a versão moderna daquilo que chamou de “cavalgada islâmica”, esquecido de que as chamadas guerras de religião dos séculos XVI e XVII já haviam sido travadas sob o lema “crê ou morre”. Foram, essas, lutas por poder, assim como o Terror foi uma grande batalha pelo poder. A guerrilha moderna, seja guerra de libertação nacional ou não, promove uma guerra civil e também é uma luta pelo poder ─ que se mascara pelo combate em nome de uma fé religiosa ou por dada concepção de Estado. Tal como as guerras de religião nos séculos passados, a guerrilha não conhece convenções ─ exceto aquela, não escrita, de que o prisioneiro é um entrave que deve ser removido.
A fotografia da guerra civil no Iraque diz disso tudo. Mas acrescenta um pormenor: o que vai morrer sabe que morre não apenas porque tem uma crença diferente daquele que o mata, mas também porque defende um Estado que este deseja ver morto. Mesmo quem mata fria e calculadamente para chegar ao poder, porém, ainda poderá guardar a lembrança de que é um ser humano. Por isso, alguns escondem a cara com vergonha de ser reconhecidos por aquele que vai morrer em nome de uma variante da grande fé. Não se escondem por medo. Os que vão morrer não terão a oportunidade de aplicar a pena de Talião. Os que vão matar têm vergonha de haver traído o amigo, o vizinho, talvez o parente – em nome da fé que mal sabem ser a verdadeira máscara com que os que comandam escondem seu desejo de poder.
Nas guerras de religião ou na “cavalgada islâmica” de Saint Just, matava-se sem vergonha ─ talvez com prazer, esperando ser recompensado em uma outra vida após a morte ou em um modelo idealizado de Estado; na guerrilha moderna, a proximidade e a confiança com que assassino e vítima conviveram até o momento fatal, faz do ato de tirar a vida alheia uma ação vil, de cuja vileza o assassino tem consciência ─ ação que lei alguma, convenção alguma, punição alguma poderá transformar em um ato de guerra ou, muito menos, de heroísmo.
É preciso compreender que uma guerra se faz entre Estados, e ela é travada pelos súditos que, pelo contrato social, decidem empenhar sua vida cidadã em defesa do que eles mesmos construíram – o seu Estado. E que a defesa dos cidadãos contra os que querem rasgar o contrato social não é terrorismo de Estado. É cumprimento do dever.
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